quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Búfalos na Praia

Saio da praia, olho pro asfalto. As ondas de calor que saem pelo chão transformam o caminho numa imensa frigideira, onde o horizonte faz o chão virar espelho e a paisagem tremula como miragem. Estamos no Rio de Janeiro, praia da Ipanema, 37 graus marcam o relógio. Mesmo sendo seis e meia da noite, pessoas se bronzeiam e curtem a areia como se ainda fosse dia. E realmente é. Dada a quantidade de almas pelas ruas, no Rio poderia ser considerado que só anoitece quando chove, que é quando realmente as pessoas vão pra casa dormir no mesmo horário. Pego a van que passa e me sento no banco da frente. A máquina segue seu rumo.
Viajar ao lado do motorista é praticamente a primeira classe da van. Janela sua e de mais um apenas, controle para subir ou descer o vidro, sem apertos, sem gente em pé ao seu lado, sem ficar encurralado entre seu lugar, um mar de corpos e a saída. Se no ônibus, gigante de metal, as pessoas se aglomeram no corredor se equilibrando como podem, na van a falta de espaço atinge níveis que questionam as leis da física. Não há o risco de queda, pois é impossível cair, já que todo e qualquer espaço possui um corpo lutando por ele. No teto ficam os mais altos, curvados e olhando para o chão, tentando apoiar-se nas cabeceiras dos bancos, formando com o corpo uma espécie de letra 'L' invertida.
Penso que para trabalhar de cobrador em uma van é necessária experiencia anterior como estoquista ou similar. Eles encaixam pessoas, acham espaço onde não existe e circulam por dentro da van com uma facilidade incrível, cobrando e recebendo troco de passageiros seja lá onde eles estejam dentro daquele espaço semelhante ao de um banheiro. Nessa sauna sobre rodas, tem-se a vantagem da agilidade, já que os motoristas geralmente são pessoas que cresceram sonhando em ser pilotos de fórmula 1. A van não é como o ônibus, baleia que ondula pelos rios de asfalto. Está mais para um búfalo, que corre com a fúria do estouro de um rebanho. Qualquer coisa que se aproxime ou tente competir acaba levando a pior. O letreiro e a numeração da van, quando existem, são extremamente supérfluos e obsoletos. O cobrador, com voz de feirante anuncia em cada aglomeração de pessoas (não existe ponto) o itinerário completo da viagem: "Gávipanemalebloncopalemelugarsentadovai!" Assim informa que a van passa por Gávea, Leblon, Ipanema, Copacabana e Leme, com lugares disponíveis para viajar sentado. Tal palavra de 39 letras é pronunciada em uma velocidade que faria qualquer locutor de rádio se sentir um estagiário em início de carreira. Além do gogó apurado e da facilidade de locomoção onde não há espaço nem para uma folha de papel, o equilibrio dos cobradores é espantoso. Circulam com a porta aberta, equilibrando-se no batente da porta de correr, a centímetros de voarem direto no chão, fazendo movimentos que lembram um praticante de windsurf ou iatismo. Sua vela é a porta. Seu mar, as calosidades e quebra-molas da via urbana.
Nas sextas-feiras quando escurece, a grande maioria dos búfalos que passam pela zona sul faz o mesmo trajeto: "LAPA - CENTRAL". O espaço que antes era apenas uma sala de espera quente e apertada se torna uma pequena boate móvel. O DJ Piloto no comando do som do carro, liga o funk que faz os passageiros terem uma pequena prévia do que os espera no bairro berço da boemia carioca. Os gringos não entendem muito bem como essa gente que se aperta com sono todas as manhãs é a mesma que tira férias da vida quando passa das onze na sexta. Como o trabalhador que faz milagres financeiros para pagar as contas, comida e moradia para ele e para os seus, consegue se tornar o rei da festa nas primeiras horas de sábado? Eis o segredo brasileiro.
Já disseram uma vez que o Brasil não é um país sério. Pois mataram a charada. O Brasileiro não se leva a sério, e é por isso que é o povo mais feliz do mundo. Todo brasileiro tem o seu "foda-se" no bolso, pronto para uso. Dinheiro é malabarismo, contorcionismo e até ilusionismo. Passamos juntos na roleta do ônibus, negociamos os valores de produtos (três latinhas por 5, quatro latões por 10), criamos a pendura na venda da esquina, fazemos um rolo naquela televisão usada. Um dos paises de maior desigualdade econômica sabe muito bem que ser feliz é item de primeira necessidade. O samba, o funk, o reggae, o rock, o sertanejo, o forró. As festas juninas, os ensaios na Sapucaí. O povo sabe que sem isso, não há vida. Trabalhar é obrigação, menor do que ser feliz. E é por isso que estamos atrás de vários paises em matéria de desenvolvimento. Porém olhe pelo lado humano. Os mesmos países que são líderes econômicos e em qualidade de vida são aqueles do povo frio, fechado, alheio. Pergunte uma informação nas ruas da França. Peça para pagar o seu tablóide londrino quando voltar do banco. Peça carona ao motorista de ônibus de Miami. Agora volte ao Brasil e seja feliz.
Moramos no lugar onde o mundo sai de férias. Não é a toa que tiramos férias mesmo em casa. Em cada esquina, em cada beco, em cada casa há uma festa. Esse é o maior defeito e a maior virtude do brasileiro. Não levamos a sério política, economia, moral. A pátria mãe gentil é uma mulata de escola de samba que samba em meio às plumas que caem da sua fantasia. O show tem que continuar, mesmo que se saiba que uma hora ele acaba. A variedade de ecossistemas, de etnias, de culturas, de músicas e de tribos é a maior do mundo. Temos o rico e o pobre se abraçando e chorando no Maracanã. A analfabeta e a juiza vibrando ao ver o Salgueiro na avenida. O vendedor de mate que trás um oásis portátil em cada ombro. A melhor coisa do Brasil é o brasileiro. Tenham orgulho de serem o que são, mas por favor não se levem a sério.
A van sai da orla e adentra o mar de prédios. Saio da nave que não chega a parar para o desembarque. É preciso agilidade e perícia para saltar do veículo em movimento sem cair. Vejo a van arrancar como touro que avista a bandeira vermelha. Volto a ser só eu, ao invés de um recheio compacto. A sensação é boa, o vento que antes nem era tão percebido ganha ares de ar-condicionado quando se sai de uma van lotada. Olho para cima e vejo o nosso amigo de pedra, no alto do monte, imitando um pássaro com os braços esticados como asas. É a sutil mensagem que aqui estamos bem perto do céu. E que temos que agradecer todos os dias por poder andar por essas ruas, que o mundo inteiro gasta rios de dinheiro para conhecer e para nós custa apenas dois e cinquenta, podendo ser negociado a três por seis.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Rotina

          Anos 90, Rio de Janeiro. Depois do café da manhã, dezenas, centenas, milhares de moleques saíam de casa e faziam a convocação. Na minha rua, Aldemir (mais conhecido como Demizinho), que morava no primeiro andar, era o primeiro a descer e chamar o resto da gangue. O garoto moreno, gordinho, cabelo liso denunciando a descendência indígena inflava seus pulmões e gritava o mais alto que pudesse em direção ao décimo andar: "Leoooooo! Júliooooooo!" Os dois escutavam o chamado e se despediam da Tia Rita (o "tia" era quase o primeiro nome) e saiam correndo rumo ao elevador, ou às escadas. Antes disso, como ritual seguido rigorosamente, a bola de couro da Topper ia primeiro pela janela. Descia com fúria do décimo andar direto para a rampa da garagem, nosso estádio secreto. O barulho da bola batendo do concreto, vinda do último andar daquele prédio da Otaviano Hudson era como o tiro de largada para aquele domingo de férias: BUM!
          Eu morava no terceiro andar e ao ouvir aquela conversa cheia de vogais ("desce aeeeeee!" "Já voooooo!") já iniciava os procedimentos para a diversão: Botava minha sandália Rider (utilizada como luvas de goleiro, traves para o golzinho e bumerangue em caso de briga), meu short de tactel (que servia para jogar bola e traje de banho para um eventual banho de mangueira) e minha camisa (que podia ser de time ou não, mas era uniforme oficial do Com Camisa FC na hora do clássico contra o EC Sem Camisa). Minha mãe costumava dizer que meu nome mudaria pra Daniéuô de tanto me chamarem assim pela janela. Logo logo ouvia o meu nome gritado pela janela: "Daniéééééuooooo!" Ao olhar pela janela, já estavam os três lá embaixo me chamando. Ao descer, continuávamos a chamar o resto do pessoal: André Felipe, o mais velho, junto com o Leo, era o próximo. Morava no prédio em frente e escolhíamos na sorte quem ia apertar o botão do porteiro eletrônico para chamá-lo. O mulato da cara redonda que lhe rendeu o apelido de Horácio (dinossauro criado por Maurício de Souza) desligava sua vitrola e vinha contar as últimas novidades sobre o seu projeto em se tornar DJ profissional. Mais para cima da rua morava o Roger, baixinho dos mais novos da galera, especialista em pique esconde e dos mais habilidosos no pique-pega e polícia e ladrão. No mesmo prédio tinha o Ronaldo, cria da Rocinha que ficava de férias na casa do tio (ou avô, nunca soube) que era porteiro chefe de um dos prédios. Ronaldo, botafoguense roxo, era perito em pipas, arraias, marimbas, além de ser bom jogador de futebol. Juntávamos todos e íamos chamar Gilson e Wilson, que moravam há 3 quarteirões de distância. O pai do Gilson era venerado por todos os moleques por ser mestre em bicicletas, praticamente um cirurgião a nossos olhos.
          Voltávamos ao estádio-garagem e iniciávamos a divisão dos times, que era feita por tamanho. Eu para um lado, Demizinho pro outro. Leo para um lado, André Felipe para o outro, Júlio e Ronaldo também iam para times opostos, Gilson e Wilson eram em regra nossos goleiros, embora o Leo também se aventurasse no gol (ou portão da garagem, como preferirem). Roger e algum outro moleque amigo também jogavam e a pelada se iniciava. Eram chutes tortos, de bico ou de peito de pé, que eram defendidos pelos goleiros mais hábeis de toda a rua, que gritavam com orgulho o nome do arqueiro profissional do seu time. Eu gritava "Gilmarrrr!" Grande goleiro do Flamengo e da Seleção. O Leo defendia sob a benção de Wellerson, arqueiro tricolor. Ronaldo fazia pontes exaltando Wagner, eterno goleiro alvi-negro. Não haviam vascaínos nessa pelada, mas quando algum se aventurava pelos nossos lados, Carlos Germano era lembrado pelo eventual pequeno cruz-maltino. O futebol era jogado sem preocupação, com gritaria, gargalhadas e reclamação, mas com poucos palavrões. Palavrão naquela época era motivo para ficar de castigo e não descer para brincar no dia seguinte, então ninguém se atrevia a proferir palavas daquele teor. Os palavrões vinham das janelas, quando as acertávamos e sumíamos instantaneamente como passe de mágica. Ao perna-de-pau que fez a burrada de isolar a bola na casa do vizinho, cabia a dura tarefa de ir sozinho bater na porta e pedir a bola de volta para o vizinho. A mais temida era Dona Fayga, senhora judia de 350 anos que morava no segundo andar e conhecia mais palavrões que um marinheiro filho de um casal de feirantes. Seus gritos ecoavam em nossas cabeças a ponto de passarmos correndo e em silêncio pelo segundo andar. A maior prova de coragem era tocar a sua campainha e sair correndo. A própria proximidade com a porta já nos dava arrepios, tamanho pavor que tínhamos por aquela senhora que mal conseguia andar da sala para o banheiro.
          A pelada terminava na hora do almoço, onde as mães saíam de suas casas e faziam a segunda convocação, Tia Rita, Dona Marizete, Seu Carlos e Tia Goretti (minha mãe) gritavam nossos nomes e íamos com a fome de náufragos devorar nossos pratos de arroz, feijão, bife e batata-frita regados a coca-cola gelada. De tarde era a vez das sessões de Super-Nintendo. Fazíamos um rodízio não-verbal e nos divertíamos horas e horas com Super Mario, Fifa Soccer, International Superstar Soccer, Street-Fighter, Mortal Kombat e Mario Kart, além de outros tantos jogos. Os mistos quentes preparados, e a coca-cola sempre presente eram o combustível de copas do mundo, grandes prêmios de fórmula um, lutas virtuais e aventuras na garupa de um dinossauro. Aos poucos, ia dando o horário de irem para casa jantar, cada um voltava ao seu ninho sabendo que no outro dia haveria uma repetição daquela mágica rotina que hoje nos causa um sorriso feliz por ter vivido tudo aquilo e um olhar triste da saudade daquele tempo que não volta mais.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Moby Dick (FINAL)

          Anoiteceu. Dentro da colmeia não se vê a luz do dia. Chegam cedo, nos primeiros raios de luz, e vão embora quando a lua já reina soberana. São senhores, senhoras, meninos e meninas sacolejando dentro da máquina como meia encardida. O ônibus corta a cidade maravilhosa com aprovação dos morcegos que voam por entre as amendoeiras centenárias. Aquilo tudo ganha aspecto de procissão. Rostos cansados, abatidos, com fome, com frio. Fora isso, um clima de velho oeste também é notado. Olhos atentos, desconfiados. Parecem estar relaxados, mas usam o rabo do olho para certificarem-se que não são ameaçados. Ônibus de noite é assim, ninguém confia em ninguém.
          O ronco da máquina de lavar ecoa na cabeça de todos, é o barulho dominante. A Avenida Niemeyer transforma-se em um trem fantasma, onde kombis, carros e motos passam rente, zunindo ao fatiar o ar. Seus faróis iluminam precariamente aquela pista que serpenteia circundando a pedra, num movimento semelhante ao do mestre-sala acompanhando a porta-bandeira. A cada curva, os corpos são jogados para um lado e para o outro, e a lavagem daquelas peças de roupa, com rugas, manchas e cansaço prossegue pela noite. O passageiro do ônibus noturno nada mais é que uma camisa, uma luva, uma meia nas mãos do patrão. Usam, amarrotam, esgarçam. Jogam na máquina e deixam-os secando nos seus barracos, suas casas, seus apartamentos, para no outro dia assumirem a árdua tarefa de serem úteis novamente. O prêmio vem através de migalhas. O operário de uma linha de montagem automobilística ganha o equivalente proporcional a um pneu. O arrumador de um grande hotel de luxo ganha uma toalha, e por aí vai. É a lógica do mundo moderno. As pessoas se reduzem à sua função, a um objeto. O faxineiro, sem mentir, poderia declarar que é uma vassoura. O mecânico é um alicate, o médico é uma seringa. São apenas números e funções.
          Depois de tantos solavancos, o monstro de ferro começa a vomitar. Os que moram mais perto do trabalho vão descendo aos poucos, enquanto os que moram no ponto final já vão conquistando alguns minutos de sono rumo ao leito merecido. O mesmo cidadão que dorme no ônibus voltando para casa é aquele que é taxado de desleixado e incompetente ao chegar atrasado. Moram a uma, duas, quatro horas do trabalho, fazem baldeação, se espremem, se comprimem, se censuram para poder trabalhar, e são vistos como alguém sem comprometimento por um chefe que chega em 20 min ao trabalho dentro do carro do ano.
          Aos poucos o ônibus se esvazia, sobram lugares. O ponto final se aproxima, mas isso é um mero detalhe. Cada passageiro tem seu próprio ponto final, que é a hora de descer. No ônibus da vida é um pouco diferente. O ponto final não somos nós que decidimos. Um dia o Motorista para, abre as portas e diz: "É aqui."  Você é obrigado a descer, e a vida continua. Podemos ter dificuldades na vida, vislumbrar de perto a porta de saída, mas é em vão. Quem abre a porta é o Motorista, o Guia. Enquanto esse momento não chega, vamos viajando nesse ônibus gigante, redondo e azul que é o planeta Terra. Um ônibus que não para para ninguém, mas que todos, vivendo ou apenas vivos, subimos e buscamos um lugar para ficar. Se vamos olhar para o chão, para nossos próprios pés, reclamar das sacudidas da vida, ou olhar pela janela e aproveitar a infinidade de coisas maravilhosas que passam por nós durante o trajeto, aprendendo com elas, nos tornando melhores, e nos segurando firmes durante os buracos pelo caminho, cabe a nós escolher. Já dizia o ditado: Na vida, tudo é passageiro, menos o cobrador e o motorista.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Textinho de quinta

          Quinta, hoje tem feira. Evento semanal das mais diversas ruas, com algumas peculiaridades que podem ser exploradas pelo vosso humilde cronista. Na rua Ministro Viveiros de Castro (rua com nome de juiz) em Copacabana, quinta-feira é sinônimo de acordar cedo com o barulho de kombis e caixotes. Lá pelas cinco começa a montagem daquele shopping improvisado, ao ar livre e sem vidros entre o consumidor e a mercadoria. Lá, o freguês pega, apalpa, cheira e até come o que pretende comprar. Já houve caso de ter passado por lá e ter comido uma senhora salada de frutas só em amostras de produtos. Morangos, bananas, ameixas, melões,  todos estão lá com suas cores, cheiros e gostos característicos. Volta e meia o jornal da tarde faz matéria sobre economia levando um senhor careca, com a camisa de botão por dentro da calça para pesquisas de preço na feira. Coitado. Preço na feira é negociado. Placa com preço serve pra quem não frequenta a feira. Feirante conhece o comprador assíduo pelo nome, o lote de três reais vira "dois é cinco" e a duzia de bananas vem com quinze. Pro sujeito careca, engomado e quadrado, o preço varia pra cima. Cara de rico, preço de rico. Mesmo uma feira em Copacabana, "bairro grã-fino",  tem dessas coisas.
          Mais pra ponta da feira, um combate indireto: o vendedor de peixes de um lado e o de rosas do outro. São  vermelhos, xereletes, trutas, namorados  (aqui mortos e longe de serem poéticos, apesar do encanto que proporcionam se combinados com arroz, batatas e o tempero certo) que enfrentam rosas, cravos, girassóis e copos de leite. A batalha dos cheiros é benéfica para ambos: o florista pega a rebarba dos clientes do peixeiro  (não creio que muita gente vá à feira com intuito único de comprar margaridas, por exemplo) e ao mesmo tempo cobre os peixes deste com aroma mais agradável.
          Em barracas menores são vendidos segmentos alternativos ao hortifrutigranjeiro, bela palavra. Há a banquinha dos pequenos utensílios domésticos, com ralos, colheres de pau, batedores de ovos e carnes, desentupidores de pia, bicos de torneira e mais. Junto dela temos a curiosa barraca do rastafari que vende camarão (que se interpretado fora de sua forma literal pode causar problemas) e a de especiarias logo ao lado, que se existisse há uns 511 anos atrás poderia mudar o rumo da nossa história.
          Na barraca da granja, cenas fortes. Galinhas depenadas, penduradas pelo pescoço dão exemplo aos parentes rebeldes e subversivos. Duzias e mais duzias de ovos se empilham como um edifício de apartamentos e mais ao  lado uma grande corda de linguiças posta à vista semelhante a uma decoração natalina. Passo rápido e por trás da feira. Hoje não posso parar. No passo ligeiro percebo a mudança de tons entre as barracas, como alas de uma escola de samba. O enredo e o cântico variam pouco. Cantos de sereias  carecas, bigodudas e suadas pedindo um segundo de sua atenção em troca de um lote de laranjas, uma posta de salmão ou  um  molho de couves. Música, sem dúvida.
          Vou embora sabendo que a parte mais triste da feira ainda vai ocorrer. Lá pelas cinco da tarde, quando os fregueses já se foram na maioria, e os garis tomam conta, é hora da xepa. Quem não tem dinheiro espera a xepa e garimpa entre as sobras o que ainda serve. Tomates machucados, laranjas com a casca manchada, alfaces amassados. Lixo pra uns, tesouro pra outros. A manga ferida após o tombo jaz esquecida no meio fio. E pensar que horas antes era uma das estrelas do espetáculo. Agora é esquecida, perdida, inútil. Mal agradecidos. Quantas outras não foram vendidas com a ajuda de sua presença próxima a evidenciar beleza e cheiro? Tal como a estrela de televisão com seus 15 minutos de fama, a coitada da fruta é enxotada pelo vassourão do gari que cumpre o seu dever. Às seis, vestígios da feira ainda estão presentes, ao notar poucas folhas de hortelã na calçada, e o asfalto molhado pela água que o caminhão da Comlurb trouxe para despachar o grosso da sujeira. A aparencia geral é do salão de carnaval em quarta-feira de cinzas. A colombina, manga carlotinha, chora dentro da caçamba, com saudades do espetáculo que se repetirá sem ela, toda quinta, em Copacabana.

domingo, 13 de novembro de 2011

Moby Dick (parte III)

Ao lado do banco, a janela. A janela é lugar privilegiado dentro do organismo metálico móvel.
Da janela você vê o mundo lá fora. Sabe o que está acontecendo fora do casulo, da mini-colmeia. Além disso, sentar na janela (por que o popular 'senta na janela' e o letrado 'senta-se à janela') na maioria das vezes significa ter mais espaço (por não ter ninguém ainda sentado naquele par de bancos), ter mais vento (no verão), controle da ventilação (em caso de vento o chuva, você tem o controle do 'abrir' e 'fechar' da janela), e principalmente um lado para encostar a cabeça para quando quiser dormir.
          Na janela passa o filme de maior duração e reprodução da história: a vida cotidiana. Nessa televisão futurística, onde podemos romper a barreira do vidro e mergulhar no 'programa', assistimos a todos os gêneros televisivos e cinematográficos. Comédias relâmpago, por um tropeção ou estabaco de um pedestre desajeitado, filmes de ação do tipo policial (bem comuns nos dias atuais), romances mil com namorados, amantes e apaixonados esperando no ponto, trocando olhares ou se beijando numa esquina. Filmes de terror com estradas escuras e relâmpagos de gelar a alma, e aventuras como as da corrida do gari  para o caminhão de lixo em movimento e a fuga do camelô evitando o rapa. Canais esportivos, com malabaristas, jogadores de futebol e pipeiros estão lá. Resta a quem está no corredor, aguardar a pessoa da sua janela sair ou outra próxima vagar. É por isso que os idosos sentam-se nos primeiros bancos, mesmo com janelas vagas ao fundo. Sua capacidade visual para encontrar janelas é reduzida, então procuram lugares mais próximos para ter de andar menos e evitar um tombo quando o ônibus se debate. Ou isso ou ao lado da saída, caso o trajeto seja muito próximo ou o ônibus lote muito, caso contrário teria que se esgueirar pela selva de corpos do corredor para poder ir embora.



(Termina na quarta e última parte, PROMETO!)

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Cereja.


O bebê foi feito na cama.
A criança pula na cama.
O adolescente se joga na cama.
O adulto descansa na cama.
O velho mora na cama.


Cama = 'c' - ama = se ama = amar a si

Então, crianças. Sejam espertos e encontrem seu amor próprio de novo ao final de cada dia.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Moby Dick (parte II)

          Em frente ao cobrador, a peça mais máquina do organismo: a catraca. Peça fundamental para o bom funcionamento do sistema digestivo do ônibus, ao mesmo tempo que é ferramenta de segregação e contradições. A catraca é o estômago da baleia. Nos aperta, mastiga, nos retira um pouco da energia que a máquina necessita em forma de alguns níqueis e nos coloca para dentro, nos digere. Como chamar de "público" um tipo de transporte que atende quem tem algum dinheiro e deixa ao léu os que não o possuem? A cada dia que passa menos cobradores existem nos ônibus, gradualmente sendo substituidos por um aparelhinho amarelo que surrupia poucos dinheiros ao se encostar um cartão na sua superfície plástica, morta. Ao invés de um "bom dia", recebemos uma luz verde e um "pi" sonoro que substitui o "pode passar". Cobradores vão ficando obsoletos, o motorista assimilando as duas funções e ganhando o mesmo por isso. Pode ser que um dia os ônibus não tenham mais cobradores nem motoristas, a catraca de lá nunca será removida. É a essência da filosofia do mundo moderno, "evoluido". Se tem dinheiro, passe, use, avance. Se não tem, pare. Saia. Fora.
          Finalmente chegamos ao interior da baleia. Duas fileiras paralelas separadas por um corredor metálico. Semelhante às galés da época bíblica, onde fileiras de escravos remavam em um imenso navio romano, são os ônibus de hoje, que com grilhões escondidos (dividas e obrigações ao invés de algemas e correntes) nos fazem trabalhar para atender às vontades do César vigente. Ao fim do corredor, uma cadeira une as duas fileiras e formam um imenso "U", como uma vaia literal escondida. A vaia que poucos percebem, é o próprio rosnado do carro, que serpenteia por entre seus familiares e risca o asfalto com sua borracha negra e mórbida. Nesse oceano, junto com os caminhões, são as maiores criaturas, e as que mais são notadas numa metrópole. As pessoas que ali dentro estão me dão a impressão de participar de algum tipo de celebração religiosa, de culto, de missa. A maioria calada, porém todos com o mesmo movimento corporal, as cabeças balançando no mesmo compasso, chacoalhadas subitamente a cada troca de marcha do motorista. Escolho um dos poucos lugares que sobraram e tenho a sorte de ter vaga ao lado de uma janela. Sento e me torno parte daquela dança coletiva inconsciente. O banco, cinza na maioria das vezes me passa a impressão de não ser destinado a pessoas. O espaço entre dois bancos varia entre cinco e dez entímetros, no máximo. Pelo que parece quem o idealizou esqueceu de considerar que as pessoas têm nos lados do corpo extensões periféricas que não podem ser removidas facilmente chamadas "braços". Ou isso ou era um romântico genial, forçando as pessoas a utilizarem o veículo abraçadas umas às outras. Não, o real objetivo é espremer mais, caber mais gente onde não poderia caber mais ninguém. No estreito corredor de um banco de largura muitas vezes se atinge de pé o dobro de pessoas que poderiam sentar no mesmo espaço. Creio que o próximo passo na "evolução" será a diminuição do número de bancos, visando maior lucro e transformando o ônibus em trem, seu primo mais cruel ainda.

(no próximo post, a conclusão. continuem no ônibus que a viagem é demorada)
         
       

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Moby Dick (parte I)


   Como é dolorosa a espera por quem se quer bem. O nosso encontro diário não necessita de marcações. De segunda a segunda nos encontramos, com a mesma felicidade, o mesmo alívio quando nos avistamos, e a mesma aflição quando há um atraso. De longe, o reconheço. Estico o braço direito em direção ao nada. Ele se aproxima, faço sinal de positivo com o dedão. Criatura orgulhosa que é, finge não ter me visto e passa por mim devagar mas pára alguns metros depois, parecido com uma mulher se fazendo de difícil. O ônibus abre a porta e subo. Assim começa a história.
          O conheci ainda criança, levado por meus pais aos mais diferentes destinos. Sentia medo daquele colosso de metal, que rosnava alto, chacoalhava, nos fazendo equilibristas dentro de seu organismo. Associava aquilo a uma baleia, que nos engolia e viajávamos dentro de seu estômago, assim como faziam os personagens de desenhos animados. Com o tempo fui crescendo e o medo mudou. Seu tamanho e movimento caótico não me impressionavam mais. Aos 13, o maior medo era ser engolido pela baleia errada, indo parar em alguma terra distante, inacessível, sem volta. Além disso, temia os outros passageiros. Ônibus nos anos 90 eram alvos constantes de assaltos, mortes, violência. Atualmente ao coisas melhoraram um pouco neste âmbito, e o que eram encontros casuais se tornaram uma relação de dependência.
          Subo seus degraus e dou bom dia ao motorista. Um dos poucos 'bom dias' sinceros que ainda existem. O significado desse termo esvaziou-se ao longo do tempo, de modo que 'bom dia' não é mais desejar que o destinatário tenha um dia produtivo, positivo, bom. Dar 'bom dia' é um 'oi' mais longo. Se dá bom dia para qualquer um, até para o seu pior inimigo. Bêbados dão bom dia aos postes, idosos dão bom dia para a televisão que passa o noticiário. Para o motorista do ônibus, meu bom dia é sincero. Deste momento até a hora de eu saltar (ou soltar do ônibus, no popular), ele é o responsável pela segurança minha, dele e de todos em volta, incluindo os que estão nas calçadas. Se recebo o bom dia de volta é bom sinal, mesmo que seja só um 'oi' mais longo. Posso ser ignorado, mas a minha parte eu fiz.
          Logo em seguida lá está a peça mais humana da máquina: o cobrador. Ao contrário do que pode parecer, o cobrador é mais querido que o motorista. É dele o dever de nos tirar o dinheiro em troca do serviço de trasporte, mas de certa forma é ele que faz o papel de recepcionista do ônibus. O 'trocador' nos informa se o carro vai passar na rua que desejamos, nos ajuda a parar no ponto certo caso não conheçamos o trajeto. Pode vir dele também o nobre ato de dar descontos na passagem de algum necessitado ou de avisar ao 'piloto' que ainda tem gente pra descer, quando o ônibus lota. Além disso, em grande parte do tempo ele é passageiro como todos nós, podendo conversar um pouco e tentar tirar o peso daquela jornada diária à qual se submete. Quanto ao motorista, não lhe é permitido conversar (só o necessário, diz o adesivo colado no vidro). Apesar disso é o que mais se comunica com todos. Atrás de sua cadeira, fica sua bandeira. Pode ser de times de futebol, do santo da devoção ou somente colorido. É sua maneira de dar uma identidade ao seu 'escritório'. Deixar aquele ambiente impessoal, cinza, um pouco mais colorido.

          (continua depois, pois se continuar escrevendo, perco meu ônibus)

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Big Bang

Hoje acordei diferente. Clichê ou não, essa frase deu o tom do dia que se seguiu. Acordei partido ao meio, como se uma metade de mim estivesse fora de sincronia com o resto do corpo. Minha suspeita se confirmou. O ouvido esquerdo, ferramenta utilizada impunemente para atender telefonemas, ouvir reclamações e cobranças, atentar às campainhas de portas que devia abrir, esse meu dispositivo tão necessário hoje acordou diferente. Uma mão invisível o cobria e o som percebido era abafado, tampado, oprimido por uma barreira misteriosa. Sensação horrível e desesperadora a de ficar parcialmente surdo de um lado. A cabeça pende, o equilíbrio se fragiliza, assim como o psicológico se abala. De imediato surgem as tentativas vãs de reparar aquilo que nos atrapalha o amanhecer rotineiro. Levantar com um pedaço faltando, se sentir um carro com pneu arriado. Água, dedo mindinho, inúteis. Cotonete não há. Solteiro que se preze não tem tal coisa à disposição. Sento na beirada da cama, sentido o mundo pesando para a esquerda relembro de episódio semelhante no fim da infância. Acúmulo de cera, disse o médico àquela época. Fruto da origem européia que faz com que meu organismo a produza em anormal abundância, quem diria. Cera, lacre de cartas com brasões seculares, matéria-prima dos mini-edifícios das abelhas, elemento principal das velas de oração, inimigo número um de um ouvido desavisado. Sinto-me deficiente, de fato mas não de direito. Saio para a rua à procura de respostas e encontro várias a perguntas que nunca tinha feito até então.
O barulho do elevador, o bom dia ao zelador, a própria voz. Tudo soa apagado, desfocado, como uma televisão mal sintonizada. É como ver colorido com um olho e preto-e-branco com outro. Percebo a falta que a audição esquerda me faz. Preciso de concentração e contorcionismo para me encaminhar ao médico sem esbarrar em ninguém. Tomar o ônibus se torna desafio dos mais complexos, ação que há horas atrás era natural, impensada, automática, fácil, simples. Minha conclusão é das mais horripilantes. Estou cego do ouvido. O utilizava para enxergar o que fugia aos olhos. Os 'clicks' de abrir porta, apertar botões, a certeza de ações executadas pelos simples estampidos indignos de atenção agora despertam uma saudade desesperadora. O telefone chama ou está mudo? Já atenderam? Disseram "alô" ou foi impressão minha, talvez pela expectativa de conseguir ouvir? Nada é certeza quando se é cego para os sons. Nesse mundo tão visual, como diria Freddie Mercury, o som nos dá pistas da verdade, como uma luz no escuro das imagens. Me sinto frágil, indefeso. Não distinguir passos que te seguem, não detectar vozes que te chamam, não ouvir zunidos de coisas se aproximando com velocidade ou o esmigalhar de alguma estrutura se partindo, a audição é o olho que não dão tanta importância.
"De algo deve valer essa perda parcial e (espero eu) temporária." - digo a mim mesmo, com um otimismo um tanto aflito. Vejo o lado bom da surdez em algumas poucas coisas. Ler com menos perturbação e distração. Menos britadeiras, menos motores, menos apitos de guarda, menos latidos, menos gritos, menos burburinho... Penso na infinidade de sons desagradáveis que temos que engolir todos os dias que nos enfiam por dentro dessa janela sempre aberta para dentro de nós: propagandas, anúncios, pregações, baboseiras, fofocas, mentiras... E tudo isso me trás a sensação de ter esquecido o mais importante... de fato.
Música, senhores! O que seria de minha alma sem essa entidade, essa coisa viva que se manifesta pelo ar, força que ignora os olhos, instrumentos rudimentares, ignorantes e mesquinhos, e que faz vibrar as partículas e o vento, e nos levam para dimensões mais elevadas do espírito? O mundo seria preto e branco em essência. Monocromático, quadrado, frio, metálico. És tu música, que faz a terra dançar, um rodopio de bailarina a milhares de quilômetros por hora. O milagre da música se revela como bem primordial. A música está dentro de nós. Não precisamos do ouvido para ouvi-la, podemos tocá-la dentro de nós através de nossa mente e nosso coração, que pulsa dando o compasso de nossa existência, de nossos destinos, de nossa missão. Me surge de dentro o Bolero de Ravel, uma singela expressão de vida e existência, de despertar, gerada por dezenas de instrumentos feitos de metal, madeira, couro e cordas, que vibram, pulsam e reverberam, multiplicando notas e operando o milagre fascinante de serem fontes de energia divina, sendo em sua existência unicamente coisa morta. A música tocada é a vida renascendo do não-vivo. São asas surgindo de uma pedra, cânticos saídos de uma caixa de madeira, emoções reproduzidas no ritmar de tambores, cordas, metais. Como é bom saber que você existe, música. Não me sinto cego, me sinto abençoado por perceber o valor dessa dádiva tão comum a todos, e tão normal que é consumida como o ar que se respira. Descobri que és também ar, música, e sem você o mundo se sufocaria rapidamente num fim de movimento mórbido e estéril.
De repente um estalo forte, como um tiro. Me assusto, pelo visto o tiro eu fui o único que ouvi, pois ele ocorreu dentro da minha cabeça, de dentro pra fora, mais precisamente na parte esquerda da cabeça. Meu ouvido desentope e tudo volta a fazer sentido. As cores se encontram, a sinfonia da vida se reinicia. Acordado, desperto do pesadelo vivido naquela manhã cinzenta que agora se mostra colorida e vibrante. Agradeço à lição aprendida hoje e vou pacientemente esperar o otorrino para tirar a cera que ameaça me cegar para um dos maiores privilégios que se tem em vida.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Cotidiano

Soa o alarme. Insistente, sabe que você o escuta. Te provoca, te irrita, te desafia. É hora de levantar. Você já levantou, mas ainda conserva os olhos fechados, numa esperança vã de que ainda lhe tenha tempo para descansar. Tempo, Deus onipotente e onipresente. A única das forças da natureza que o homem não consegue enganar. O tempo nos falta, nos escorre entre os dedos, nos dissolve aos poucos, como gelo que derrete.
É preciso força de vontade pra encarar o que vem pela frente. Mais um dia de flagelamento. Pessoas correndo, carros gritando, barulho de motor. É a selva de pedra, a máquina, a Matrix em sua forma concreta, em concreto. Desliga o alarme, pés descalços tocam o chão. Um frio polar que vai da sola do sapato ao final da espinha. A cama parece um oásis de prazer. Macia, quente, com aura de sono. É um útero do qual todos os dias és arrancado, mortal. Agora adulto, você nasce todos os dias quando acorda, só que perdeu a capacidade de chorar, de gritar, de se indignar. O chicote que estala nas suas costas se chama "Civilização". Te arranca da cama, te joga num monstro de ferro e fogo que ronca e rosna por quilômetros até te cuspir na linha de montagem da qual você é mera ferramenta. És uma lâmpada, mortal. Quando sua luz se apagar, colocarão outro no seu lugar. És descartável, um copo de plástico com décimo terceiro e fundo de garantia. Apesar de tudo isso, você ainda vê motivos suficientes para erguer a cabeça e interpretar o papel que provisoriamente lhe foi dado. Você tem ainda um objetivo, ainda resta alguma vida na madeira do martelo que você se tornou. Pretende juntar seus cacos e fazer o que gosta, ter história ao invés de carreira. Vale a pena lutar, vale a pena brincar de ser marionete enquanto se arquiteta algo muito maior.
Vai para o banheiro, liga a luz. O dia ainda não acordou, e o breu dá lugar a uma luz dolorosamente invasiva. Sua cabeça dói, os olhos vão se acostumando aos poucos com aquela iluminação ilusória, aquela luz do dia que te cobram todos os meses. Vira-se para a pia, molha as mãos, joga água no rosto. És um resto do que já fostes, mortal. Da cabeleira rebelde, sem padrão, restou apenas o corte quadrado, limpo, reto, seco, mecânico, normal. Não tens cabelo, mortal. Sua cabeça é aparada, como grama de jardins de condomínios de prédios. A serventia é fingir naturalidade na ordem. Ainda há de chegar o dia em que nos farão carecas. O cabelo é forma de expressão como uma roupa, um livro, um discurso. Moicanos, dreadlocks, mechas, tranças, rabos de cavalo, a máquina arranca a nossa mostra de personalidade mais próxima do céu. Agora temos cabelos curtos na tesoura, coques e só. Barba nem pensar. Dá a impressão de sujeira, de descuidado, de vagabundo, de inútil. Ironicamente o filho de Deus é retratado com cabelos na altura dos ombros e barbado. A lâmina ceifa os pelos que insistem em crescer ao redor da boca. Bochechas, queixo, a parte inferior e superior aos lábios, território estéril, que como a palavra diz, não permite vida, mas que vira esterilizado e nos dá a ideia de limpo. Escova os dentes para disfarçar o hálito de fome. Ter hálito de menta é bom, um aroma de planta que foi mimetizado para uma pasta de produtos químicos que tem como objetivo nos conservar operacionais. Não se engane, mortal. Toda a inovação na área de saúde e "bem estar" é destinada a você, lâmpada, poder ficar mais tempo acesa.
Você se encara no espelho. O quadro mais cruel já pintado. O quadro que mostra decadência. Sempre atualizado. Nem a internet consegue dar noticia ruim melhor e mais rápido que um espelho. Você engordou, tem olheiras, os primeiros fios brancos dão o ar da graça. Nem trinta anos tens, mortal. És um bagaço. Uma laranja espremida pela sociedade. Sorvem teu suco com dentes de vampiro. A casca que era dura hoje está mole pela ação de dívidas, deveres, obrigações com a sociedade e valores que lhe foram impostos. Espelho. Moeda mais cruel de todos os tempos. Venderam a Pindorama por um punhado destes e o que viram refletido? O rei da natureza se viu escravo do europeu através do espelho. Hoje é animal em cativeiro. Aldeias indígenas são gaiolas, aquários, objetos de observação e entretenimento.
Já são seis. O café você comerá no trabalho, servido por eles num refeitório. Tigela de ração para cães que usam gravata ao invés de coleira. Torce para que o ônibus não demore a passar. Qualquer roupa serve, o uniforme (inibidor de identidade) está esperando por você. Logo serás um glóbulo vermelho nas artérias da máquina movida a frustração, cobiça e dinheiro. Antes de sair, olha para uma foto com a avó na geladeira, para uma garrafa artesanalmente pintada pela namorada e para o retrato do Cristo Redentor. Se lembra então dos seus objetivos, das suas metas, e da recompensa por trás disso tudo. Respira fundo e toma fôlego, como um mergulhador. Ao invés de água, cai de cabeça na rotina. O tempo o chama e seja o que ele quiser. Bom dia.

sábado, 3 de setembro de 2011

O último vôo.

Metrópole, Rio de Janeiro, Copacabana. Prédios se enfileiram em frente à praia, como uma arquibancada onde os espectadores são os altos pilares de concreto e o mar é o palco do espetáculo. Lá pela quarta ou quinta fileira de prédios, mais para dentro do bairro, um menino se debruça na janela do terceiro andar. Deve ter sete, oito anos no máximo. Sua mãe fora de casa, a empregada lavando roupa despreocupadamente enquanto o menino já está do umbigo pra cima para fora do parapeito.
Despreocupado, sem medo das rajadas de vento, sem medo da velha grade que servia de proteção quando era mais novo, mas que agora se tornou enfeite, dispositivo obsoleto em conter a curiosidade e a inquietude desta criança que gosta muito de super-heróis que voam, aviões de papel, e todo o tipo de coisas que têm desprezo pela lei da gravidade. Já sonhara algumas vezes com seus amigos o chamando lá embaixo para jogar bola, e ele se jogava da janela, caindo em pé, sem se machucar, para encurtar o caminho. Sonhos recorrentes... Voar com Peter Pan, olhar a cidade lá de cima com uma donzela no colo como Clark Kent faria, dar loopings no ar pilotando o tapete do Alladin...
O tempo está bom lá fora. Uma brisa acaricia seu corpo como um amigo que lhe dá a mão para subir um degrau mais alto. Os pombos da cidade passam perto da janela, fazendo curvas e movimentos de aterrissagem. O cartucho do jogo de aviões do Super Nintendo ainda está quente, recém jogado. A empregada escuta Leandro e Leonardo no rádio, e está terminando de torcer as últimas peças de roupa, enquanto o menino se sente cada vez mais leve, olhando a distância entre ele e o chão. É como se voasse parado, como se flutuasse. Não sente o peso de seu corpo. Olha para os prédios vizinhos imaginando-se decolando e imitando os pombos, visitando cada hora uma cobertura, uma janela, um aparelho de ar-condicionado.
Um momento de distração da empregada, uma visão fugaz... Algo cai pela janela. O barulho do impacto com o solo ecoa no vão que fora utilizado como caminho para o encontro com o chão. Um barulho desagradável, barulho de destruição, um barulho que não gera bom pressentimento à doméstica, que agora larga o que está fazendo e se dirige para a sala, onde tem uma visão diferente do que é acostumada. Duas linhas marrons dançam no ar, gêmeas, embaladas pelo sabor do vento. Elas são um pouco mais grossas que macarrão, mas brilham. O sol reflete em suas curvas e o brilho fica percorrendo o corpo daquelas linhas marrons metálicas... Algo que ela demora a reconhecer e quando consegue sua cara muda rapidamente a fisionomia, de estranheza e curiosidade para terror, horror, espanto. Corre para a janela, olha para baixo. Lá ao fim da linha jaz inerte, imóvel, aos pedaços... Sua fita preferida do Zezé de Camargo e Luciano.