sexta-feira, 9 de março de 2012

Aventura no mundo baixo.



Nos primeiros cinco, a descoberta do pequeno mundo que nos cerca. O que é seu e o que é de outros, suas mãos, pés, nariz, boca. Nossas primeiras riquezas, os brinquedos. As crianças também começam a desenvolver hierarquias a partir de características físicas e psicológicas. O mais bonito e a mais bonita surgem. O de temperamento mais agressivo começa a ser temido e ganha traços de líder, impondo suas vontades através de empurrões, beliscões, mordidas, tapas, arranhões e gritos. Por mais que existam adultos por perto para impedir tais práticas, assim como fazem os gatunos do mundo real adulto, os valentões agem na surdina, ameaçam, chantageiam, mentem e manipulam. Tudo isso com bochechas rosadas e botas de super-herói.

O dono da bola aparece como um dos primeiros ricos. Meninos de séries superiores se associam a ele por puro interesse de jogar, enquanto o dono aproveita o status de se incluir, ainda que parcialmente, num grupo mais avançado do que os outros de sua idade. Daí aparecem os primeiros contratos sociais. Bola por segurança, irmã por acesso ao grupo, etc. As demonstrações de bravura também são notadas surgindo na mesma época. Joelhos ralados, cotovelos esfolados, queixos abertos, dentes-de-leite caídos... cicatrizes de guerra. São os destemidos que pulam, que correm, que desafiam as previsões astrais que mães, avós e "tias" fazem. A famosa frase "você vai se machucar" não soa como punição, e sim como recompensa. Uma cicatriz bem feia é um grande troféu. Quando mais dolorosa pareça a ferida, mais valente é considerado o seu portador.

Não pensem que o dinheiro é o que nos difere do mundo dos pequenos. Ele também está lá, só que em alguns casos mais colorido, em outros mais saboroso. Dependendo da escola ou do condomínio, o dinheiro pode ser lápis, lápis de cor, canetinha, botões, figurinhas, bolinhas de gude... e comida. O lanche que recebe diariamente dos pais se torna uma espécie de salário. As cotações variam pelo sabor e quantidade da comida. Uma mordida de um sanduiche da cantina do colégio vale uma boa mãozada em fandangos e cheetos, ou uns 2 ou 3 biscoitos recheados. A troca diminui de quantidade proporcionalmente para pães de queijo ou sanduiches caseiros. O recreio vira uma espécie de bolsa de valores onde o pequeno que tiver a merenda certa visita um mundo de sabores através do escambo, e aquele que possui um lanche com muitas verduras, nutritivo, com queijo branco e pão árabe, um pobre coitado.

Pouco mais tarde as hierarquias começam a ficar mais complexas. Surgem os peritos. O melhor no futebol, o melhor em queimada, o melhor no voley, no ping-pong, no totó... O mais rápido leva vantagem nos diversos esportes, nos piques e em fugir de surras. Os mais bonitos chamam atenção das meninas mais velhas. A beleza infantil nada tem a ver com sexualidade. São garotinhos e garotinhas que parecem ter saído dos desenhos ou de algum conto de fadas. O poder proporcionado pelo dom da beleza pode usar usado tanto para o bem quanto para o mal. O menino bonito acaba sendo adotado como filho pelas meninas de séries superiores. Conheci alguns meninos de 6 ou 7 anos que faziam cara de anjo para as altonas, e depois de convencidas de que aquele ser rosado era lindo, tornavam-se seu exército. Os lindinhos impunham impostos de biscoito ou apreensão de giz de cera, sob ameaça de ser acusado de lhes ter machucado, o que despertaria a ira de mil menininhas.

Irmãos mais velhos eram úteis a maioria das vezes... a não ser que seu parente fosse o chacota da turma... aí o esforço para ganhar status seria dobrado, pois a família ja teria uma pequena tradição. O inverso geralmente também ocorria. A titularidade de valentão podia também ser transmitida pelos laços de sangue. Pense no poder de um menino de segunda série com acesso à força militar da sexta? O caçula era muitas vezes tido como mascote da gangue do irmão maior, onde teria acesso a informações, xingamentos e técnicas de terrorismo infinitamente superiores às praticadas em sua série de origem.

Finalmente existia também o lado negro da força. Assim como criminosos são temidos pela quantidade de passagens pela polícia e o teor de seus delitos, na escola existem os mal falados. Aqueles que as mães chamam de "má influência". Sim, um menino de 5, 6 anos pode ser má influência. É dele que nasce o "por que?" que se levanta diante de uma ordem. É de lá que surge a audácia do "não" aos pais, seu primeiro governo. Questionamentos nessa idade são considerados uma ameaça à soberania patriarcal e que devem ser evitados. Os mais bagunceiros da turma colecionam advertências e comunicados. No meu colégio existia até um quadro de recordes e competíamos pelo posto de menino mais bagunceiro. Minhas armas eram a hiperatividade, os questionamentos e as notas altas. Sim, pois apesar de criar um escarcéu a cada lição de matemática, a nota do boletim era diretamente proporcional ao stress causado ao professor. Eu era um daqueles capetinhas de colégio que frequentavam psicólogas, viviam brigando, e todos os professores sabiam o nome. Éramos realmente famosos. Nossos ídolos eram Kevin, de Esqueceram de Mim, Denis, o pimentinha e o Pestinha. Os feitos podiam ser individuais ou em grupo. Como aquela vez em que um bando de delinquentes que invadiu a clausura das freiras, ou aquele (eu) menino que fugiu do colégio correndo pela porta da frente, deixando o ofegante e barrigudo zelador desesperado. O tradicional "corredor polonês" no recreio e aquela vez que fizeram xixi na garrafa de guaraná, que foi posta na geladeira e oferecida para uma menina beber também não serão esquecidas. Mas de todas as ações anarquistas, a que me lembro com mais carinho e a que mais faz falta é a que dá o nome deste conto que estão lendo.
Ocorria com frequência em festas de aniversário uma brincadeira chamada carinhosamente de "aventura". Consistia em numa festa de aniversário chata, explorar sem rumo os limites do lugar festivo, que podia ser um clubinho, um prédio ou até a própria escola. Comecei a estudar em um colégio tradicional de freiras e fui lá que aprendi a ser, como diria mestre Mallandro, "um capeta em forma de guri". O colégio alugava sua quadra poliesportiva para festinhas juvenis inocentes. Os culpados éramos nós, que corríamos pelo alto daquelas ladeiras imensas com nossos cadarços desamarrados e íamos visitar nossas salas de aula desertas, no breu. Era como uma realidade alternativa. O mesmo lugar que estudávamos diariamente ganhava um tom tenebroso sem luz nenhuma e com um silêncio sinistro. Qualquer barulho, grito ou rangido resultava no estouro da boiada. Uma multidão de crianças com medo correndo de volta o mais rápido que podiam, cm aquela sensação mista de adrenalina por ter escapado do monstro imaginário e alívio de encontrar novamente com os nossos eternos super-heróis: papai, mamãe, tios e tias.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A máscara secreta.

Dez horas da manhã. Samuel acorda, mas seus olhos ainda estão fechados. Seu primeiro pensamento do dia é um debate interno sobre o que fazer naquela manhã. Praia com os amigos e videogame online em casa são as duas opções favoritas. Apesar de ser segunda-feira, isso nunca foi nem será motivo para se ausentar das coisas que gosta, já que vem de berço de ouro. Antes de Cleide, sua empregada, bater na porta de seu quarto com a tradicional bandeja de prata e o famoso sanduíche de peito de peru com cream cheese acompanhado de vitamina de morango, Samuca veste sua roupa mais característica, aquela que todos o reconhecem sendo até que algumas pessoas nunca o viram sem ela: a sua cara de insatisfação.
Como uma máscara moldada para ele, todos os dias vestia a mesma expressão facial, que abria todas as portas que queria. Antes, quando pequeno, gostava de chorar. Sua mãe, economista renomada, se desesperava com aquele pranto dolorido de seu único filho. Por se submeter a uma rotina de aulas, palestras, consultorias e entrevistas, pouco tempo sobrava para o pequeno Samuel. Se tornou uma espécie de gênio da lâmpada para o próprio filho, uma gênia pessoal, que atendia a todos os desejos que o dinheiro pode realizar. Passou o tempo e ele percebeu que o choro tinha perdido seu efeito, e ficava feio para um homem que já havia visitado diversos prostíbulos conseguir as coisas na base do esperneio. Criou assim a máscara da insatisfação. Os olhos caídos, como que cansados e olhando para o vazio, a boca com os lábios encostados um no outro com os cantos levemente puxados para baixo numa precisão matemática o deixavam com uma cara de quem não está satisfeito com nada. Para Samuca, aquela cara era a chave do poder. Ele pensava que aquela cara era a de alguém que estava furioso e estava se controlando para não destruir tudo à sua volta. Achava que sua máscara impunha medo, que intimidava o resto do mundo, pobre e sem poderes. Mal sabia que a grande maioria tinha pena dele. Aquela cara era a de alguém que não cresceu, que não sabia o que era dor, o que era fome, o que era calor ou frio. Todos atendiam suas vontades não só por serem empregados ou prestarem serviços à sua família, mas também por tentarem de alguma forma darem alguma alegria ao menino que não sabia sorrir.
O sol estava fraco, anunciando a mudança de tempo que certamente faria da terça-feira um dia chuvoso e cinza. Mas a praia daquela segunda já estava garantida. Sabia ele que a piscina do condomínio estaria em manutenção, coisa que ocorria todo primeiro dia útil da semana, como previsto nas regras internas do prédio. Ele não gostava de levar muitas coisas para a praia. Vestiu uma bermuda, seu chinelo e uma camisa de treino do Real Madrid, trazida da Espanha por um tio, que recebeu sua habitual cara neutra como forma de agradecimento. Apesar de gostar de praia, de ver garotas usando trajes mínimos, raramente ia até lá por achar algo que todos podem fazer muito desinteressante. Fora que a cor branca leitosa de sua pele, cultivada a longos anos de confinamento em casa e em shopping centers contribuiu para que não pudesse ficar exposto ao sol por muito tempo, tendo como punição uma vermelhidão ridícula e uma dor que o deixava ainda mais insuportável. Ao sair do prédio recebeu diversas saudações de 'bom dia', respondendo cordialmente balançando a cabeça para cima e para baixo, mas sem tirar a do rosto sua máscara favorita.
O caminho para a areia foi tranquilo. Apenas uma rua o separava de seu destino. Apesar dos avisos de Cleide, fora sem usar o protetor solar nem o boné. Optou apenas pelo seu óculos escuros que o fazia sentir-se o próprio Exterminador do Futuro. Gostava da ideia de pegar uma metralhadora giratória e matar todos à sua volta. Era fã do filme, e fã do robô que usava o mesmo rosto sempre. Se identificava. Chegou em frente ao posto dez e localizou seus companheiros de praia, Ana Inês e Fernando, aguardando por ele. Apesar de serem gêmeos, o casal divergia entre gostos e opiniões. Aní era a amigona da galera do colégio. Conhecia o segredo da maioria das meninas e sabia tirar proveito disso. Por ser gordinha, era sempre a segunda opção em festas, e acabava aproveitando a rebarba quando saia com as amigas mais bonitas, ficando com primos, amigos e outros tipos de azarados que curtiam as saídas em dois casais, como gostava de arranjar. Desde cedo já mostrava vocação para organizadora de festas e eventos, coisa que seria de alguma serventia para os negócios do pai, sócio de uma cadeia de rádio. Já Fernando era o sujeito mais desligado que conhecera. Nunca expressava opinião, apesar de estar em todas. Tudo era decidido pelos outros e ele se acostumou a viver assim. Era amigo dos valentões do colégio, que o mantinham próximo pelo seu prestígio como filho do dono da Rádio Tupã e pelas caronas no seu Honda Civic zero, presente de dezoito anos. Obviamente, foi para a praia arrastado pela irmã, que achava Samuel até legal, mas bem estranho. Estavam ali para marcar a festa de aniversário surpresa de Rebeca, a menina mais linda e popular da faculdade, sonho de consumo de oito entre dez rapazes.
Ao saber que Rebeca estaria ali com eles, o coração tímido e frio de Samuca resolveu se manifestar. Precisava fazer algo para chamar atenção daquela princesa. Sabia que não era o mais bonito, o mais forte ou o mais esperto com as palavras. Podia impressionar com alguma atitude. E foi aí que teve a idéia de pegar onda quando Beca chegasse. Pediu a ajuda de Fernando para que comentasse e o apontasse na água, e naquele momento Samuel iria protagonizar sua façanha aquática, mostrando coragem, perícia e sagacidade. Tudo isso daria certo se o mar não estivesse revolto, se Samuel se desse conta que aprendeu a nadar em piscina e se Fernando não fosse tão desligado. Quando ela chegou, foi recebida calorosamente por Aní, que disfarçando o real motivo do encontro, iniciou um longo debate sobre cores de esmalte, roupas, lugares para se passar o carnaval e é claro, rapazes. Fernando, como sempre, desligou-se do mundo exterior ao ligar seu videogame portátil, colocando fones no ouvido e transferindo sua atenção para o jogo. Quando as meninas estavam bem distraídas entre tons de tintura e roteiros para festejar, Samuel levantou e pediu para que olhassem suas coisas, pois iria mergulhar. No exato momento que falou isso, uma onda poderosa se chocou com a areia, fazendo um barulho assustador. "Perfeito!" - pensou.
Aní sabia que Samuca nadava bem, já o viu dezenas de vezes no clube ou em seu condomínio disputando corrida com os outros garotos. Rebeca ficou curiosa para ver o desempenho daquele magrelo e branquelo desafiando aquele mar gigante. Samuel era conhecido entre o pessoal do condomínio pela sua velocidade na água. Apesar de magro, nadava com boa velocidade, e costumava ganhar os desafios entre amigos. Sendo assim, passou da arrebentação com facilidade, e também com um pouco de sorte, já que naquele momento o mar havia se acalmado. Logo surgiram as ondas e foram ficando cada vez maiores. E lá foi ele em uma onda que achou segura. Pensou em Fernando apontando para o mar, em Aní e Rebeca virando e assistindo ele deslizar por aquela parede de água em movimento. A próxima coisa que sentiu foi uma dor muito forte na perna, ainda dentro da onda. Mal havia começado a viajar por aquela massa aquática, sua batata da perna esquerda se endureceu, e o que era expectativa se tornou pânico. A onda se desenvolveu mais do que o esperado, e a parede adquiriu um tom verde escuro mostrando ser a primeira de uma série de várias outras do mesmo tamanho. O campeão de natação do condomínio agora era um mínimo ponto despencando do alto daquela ladeira molhada, como se fosse arremessado para o fundo do mar.
O barulho foi tão grande que encerrou a conversa de Rebeca e Aní sobre seriados americanos. Fernando só então se tocou do prometido e olhou chocado para a água, onde apareciam os braços de Samuca lutando contra aquela água espumosa e revolta, típica de uma onda recém desfeita. Os três correram para a beira e gritaram por ele, mas pelo barulho do mar não foi capaz de ouvi-los. Atrás dele se formava a segunda e a terceira ondas da série, bem maiores que a primeira. Quando Samuel conseguiu enxergar a areia, viu Aní, Fernando e Rebeca acenando para ele, desesperados, tentando avisar do perigo que crescia fora de sua visão. Para o menino dentro do mar, estava cumprido o seu objetivo. Rebeca finalmente o notara, e assim mostrou para eles, mesmo de longe, uma máscara que raramente havia usado, e pela primeira vez sentia necessidade daquilo. Sorriu. Foi engolido pela montanha oceânica e pelas outras duas que sucederam. Quando o salva-vidas da praia conseguiu levá-lo para a areia, ainda sustentava a mesma face feliz, com os olhos fechados de quem tem um sonho bom.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Sunset

O sol se despede de nós mais uma vez. Em vez de uma mão acenando para nós como forma de dizer "até amanhã", o que aparece é um laranja avermelhado de ferida quente, recém adquirida, de quem parte machucado sem querer ir embora. Durante a tarde enxergamos a beleza de nossa estrela guia sem saber se ela volta no outro dia. Apenas olhamos, desatentos, descuidados, torcendo para que retorne no manhã seguinte com seu sorriso que nos ilumina e seu afago que nos aquece. A luz que se esconde nos ensina que a cada dia que passa o nosso próprio entardecer se aproxima. É aquele sentimento estranho que uma vela acesa sente quando vê uma amiga se apagar. É a árvore que assiste de perto o raio estraçalhar um vizinho. É na dor que nos sentimos mais vivos. Percebemos que a vida é um suspiro, que pode ser de saudades, de admiração, de tristeza ou de açúcar.
O tapa na cara nos faz enxergar melhor. Situe-se, já! Preste atenção ou será tarde. Alias, já é tarde. Não espere anoitecer para sair de casa, da sua concha, do seu casulo. O sorriso da Monalisa é o que a vida representa para nós. Enigmática, sem início nem fim determinado, só cabendo a nós moldá-la de acordo com o que desejamos a ela, como massinha de modelar na mão da criança. Cada amanhecer é uma vitória e um desafio ao mesmo tempo. É nos dado o direito de errar por mais um dia. O que é a vida senão errar? O medo de errar é o maior limitador do homem. Seu maior censor, castrador e ladrão. O inimigo público número um tem várias identidades. É conhecido como vergonha, inveja, egoísmo. A mordaça do homem é colocada por ele mesmo.
A perda pode ser ganho se enxergarmos a vida de maneira mais plena. A alma que nos deixa fisicamente é incorporada em nós. Em cada um, fica um pedaço, uma porção das várias memórias boas que não foram deixadas, mas sim somadas a cada um. É através das memórias e das experiências juntos que nos elevamos, que aprendemos e crescemos como indivíduos. Não devemos lamentar se uma pessoa nos deixa, pois isso só acontece quando se é esquecido. A verdadeira morte está aí. Carregamos conosco a vivência de seres de luz que nos ensinaram coisas que não se aprende com pai, com mãe, e nem na escola. Aprendemos a viver. A dor é a lição mais valiosa. Nos marca, trinca o cristal mais lindo e o transforma num diamante. Chorar é normal. O choro sincero é a maior demonstração de pureza do ser. As lágrimas dizem a nós mesmos que ainda somos crianças e que aprender a caminhar é doloroso em qualquer parte da vida, só que os tombos vão ficando maiores.
Sentimento de falta não existe. Quem se vai se torna parte de nós, como já disse. Caso precise de conforto, feche os olhos e veja o sorriso de quem se gosta, que agora se encontra dentro de você. O sol apenas se escondeu, ele ainda está ali. Por mais assustadora que a noite pareça, é dia em algum lugar do mundo, do meu mundo. Feche os olhos e sinta o sol. Sinta-se vivo e então levante-se e continue a caminhar. Bom dia.












Bárbara, te amo. Você sempre estará aqui dentro.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Búfalos na Praia

Saio da praia, olho pro asfalto. As ondas de calor que saem pelo chão transformam o caminho numa imensa frigideira, onde o horizonte faz o chão virar espelho e a paisagem tremula como miragem. Estamos no Rio de Janeiro, praia da Ipanema, 37 graus marcam o relógio. Mesmo sendo seis e meia da noite, pessoas se bronzeiam e curtem a areia como se ainda fosse dia. E realmente é. Dada a quantidade de almas pelas ruas, no Rio poderia ser considerado que só anoitece quando chove, que é quando realmente as pessoas vão pra casa dormir no mesmo horário. Pego a van que passa e me sento no banco da frente. A máquina segue seu rumo.
Viajar ao lado do motorista é praticamente a primeira classe da van. Janela sua e de mais um apenas, controle para subir ou descer o vidro, sem apertos, sem gente em pé ao seu lado, sem ficar encurralado entre seu lugar, um mar de corpos e a saída. Se no ônibus, gigante de metal, as pessoas se aglomeram no corredor se equilibrando como podem, na van a falta de espaço atinge níveis que questionam as leis da física. Não há o risco de queda, pois é impossível cair, já que todo e qualquer espaço possui um corpo lutando por ele. No teto ficam os mais altos, curvados e olhando para o chão, tentando apoiar-se nas cabeceiras dos bancos, formando com o corpo uma espécie de letra 'L' invertida.
Penso que para trabalhar de cobrador em uma van é necessária experiencia anterior como estoquista ou similar. Eles encaixam pessoas, acham espaço onde não existe e circulam por dentro da van com uma facilidade incrível, cobrando e recebendo troco de passageiros seja lá onde eles estejam dentro daquele espaço semelhante ao de um banheiro. Nessa sauna sobre rodas, tem-se a vantagem da agilidade, já que os motoristas geralmente são pessoas que cresceram sonhando em ser pilotos de fórmula 1. A van não é como o ônibus, baleia que ondula pelos rios de asfalto. Está mais para um búfalo, que corre com a fúria do estouro de um rebanho. Qualquer coisa que se aproxime ou tente competir acaba levando a pior. O letreiro e a numeração da van, quando existem, são extremamente supérfluos e obsoletos. O cobrador, com voz de feirante anuncia em cada aglomeração de pessoas (não existe ponto) o itinerário completo da viagem: "Gávipanemalebloncopalemelugarsentadovai!" Assim informa que a van passa por Gávea, Leblon, Ipanema, Copacabana e Leme, com lugares disponíveis para viajar sentado. Tal palavra de 39 letras é pronunciada em uma velocidade que faria qualquer locutor de rádio se sentir um estagiário em início de carreira. Além do gogó apurado e da facilidade de locomoção onde não há espaço nem para uma folha de papel, o equilibrio dos cobradores é espantoso. Circulam com a porta aberta, equilibrando-se no batente da porta de correr, a centímetros de voarem direto no chão, fazendo movimentos que lembram um praticante de windsurf ou iatismo. Sua vela é a porta. Seu mar, as calosidades e quebra-molas da via urbana.
Nas sextas-feiras quando escurece, a grande maioria dos búfalos que passam pela zona sul faz o mesmo trajeto: "LAPA - CENTRAL". O espaço que antes era apenas uma sala de espera quente e apertada se torna uma pequena boate móvel. O DJ Piloto no comando do som do carro, liga o funk que faz os passageiros terem uma pequena prévia do que os espera no bairro berço da boemia carioca. Os gringos não entendem muito bem como essa gente que se aperta com sono todas as manhãs é a mesma que tira férias da vida quando passa das onze na sexta. Como o trabalhador que faz milagres financeiros para pagar as contas, comida e moradia para ele e para os seus, consegue se tornar o rei da festa nas primeiras horas de sábado? Eis o segredo brasileiro.
Já disseram uma vez que o Brasil não é um país sério. Pois mataram a charada. O Brasileiro não se leva a sério, e é por isso que é o povo mais feliz do mundo. Todo brasileiro tem o seu "foda-se" no bolso, pronto para uso. Dinheiro é malabarismo, contorcionismo e até ilusionismo. Passamos juntos na roleta do ônibus, negociamos os valores de produtos (três latinhas por 5, quatro latões por 10), criamos a pendura na venda da esquina, fazemos um rolo naquela televisão usada. Um dos paises de maior desigualdade econômica sabe muito bem que ser feliz é item de primeira necessidade. O samba, o funk, o reggae, o rock, o sertanejo, o forró. As festas juninas, os ensaios na Sapucaí. O povo sabe que sem isso, não há vida. Trabalhar é obrigação, menor do que ser feliz. E é por isso que estamos atrás de vários paises em matéria de desenvolvimento. Porém olhe pelo lado humano. Os mesmos países que são líderes econômicos e em qualidade de vida são aqueles do povo frio, fechado, alheio. Pergunte uma informação nas ruas da França. Peça para pagar o seu tablóide londrino quando voltar do banco. Peça carona ao motorista de ônibus de Miami. Agora volte ao Brasil e seja feliz.
Moramos no lugar onde o mundo sai de férias. Não é a toa que tiramos férias mesmo em casa. Em cada esquina, em cada beco, em cada casa há uma festa. Esse é o maior defeito e a maior virtude do brasileiro. Não levamos a sério política, economia, moral. A pátria mãe gentil é uma mulata de escola de samba que samba em meio às plumas que caem da sua fantasia. O show tem que continuar, mesmo que se saiba que uma hora ele acaba. A variedade de ecossistemas, de etnias, de culturas, de músicas e de tribos é a maior do mundo. Temos o rico e o pobre se abraçando e chorando no Maracanã. A analfabeta e a juiza vibrando ao ver o Salgueiro na avenida. O vendedor de mate que trás um oásis portátil em cada ombro. A melhor coisa do Brasil é o brasileiro. Tenham orgulho de serem o que são, mas por favor não se levem a sério.
A van sai da orla e adentra o mar de prédios. Saio da nave que não chega a parar para o desembarque. É preciso agilidade e perícia para saltar do veículo em movimento sem cair. Vejo a van arrancar como touro que avista a bandeira vermelha. Volto a ser só eu, ao invés de um recheio compacto. A sensação é boa, o vento que antes nem era tão percebido ganha ares de ar-condicionado quando se sai de uma van lotada. Olho para cima e vejo o nosso amigo de pedra, no alto do monte, imitando um pássaro com os braços esticados como asas. É a sutil mensagem que aqui estamos bem perto do céu. E que temos que agradecer todos os dias por poder andar por essas ruas, que o mundo inteiro gasta rios de dinheiro para conhecer e para nós custa apenas dois e cinquenta, podendo ser negociado a três por seis.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Rotina

          Anos 90, Rio de Janeiro. Depois do café da manhã, dezenas, centenas, milhares de moleques saíam de casa e faziam a convocação. Na minha rua, Aldemir (mais conhecido como Demizinho), que morava no primeiro andar, era o primeiro a descer e chamar o resto da gangue. O garoto moreno, gordinho, cabelo liso denunciando a descendência indígena inflava seus pulmões e gritava o mais alto que pudesse em direção ao décimo andar: "Leoooooo! Júliooooooo!" Os dois escutavam o chamado e se despediam da Tia Rita (o "tia" era quase o primeiro nome) e saiam correndo rumo ao elevador, ou às escadas. Antes disso, como ritual seguido rigorosamente, a bola de couro da Topper ia primeiro pela janela. Descia com fúria do décimo andar direto para a rampa da garagem, nosso estádio secreto. O barulho da bola batendo do concreto, vinda do último andar daquele prédio da Otaviano Hudson era como o tiro de largada para aquele domingo de férias: BUM!
          Eu morava no terceiro andar e ao ouvir aquela conversa cheia de vogais ("desce aeeeeee!" "Já voooooo!") já iniciava os procedimentos para a diversão: Botava minha sandália Rider (utilizada como luvas de goleiro, traves para o golzinho e bumerangue em caso de briga), meu short de tactel (que servia para jogar bola e traje de banho para um eventual banho de mangueira) e minha camisa (que podia ser de time ou não, mas era uniforme oficial do Com Camisa FC na hora do clássico contra o EC Sem Camisa). Minha mãe costumava dizer que meu nome mudaria pra Daniéuô de tanto me chamarem assim pela janela. Logo logo ouvia o meu nome gritado pela janela: "Daniéééééuooooo!" Ao olhar pela janela, já estavam os três lá embaixo me chamando. Ao descer, continuávamos a chamar o resto do pessoal: André Felipe, o mais velho, junto com o Leo, era o próximo. Morava no prédio em frente e escolhíamos na sorte quem ia apertar o botão do porteiro eletrônico para chamá-lo. O mulato da cara redonda que lhe rendeu o apelido de Horácio (dinossauro criado por Maurício de Souza) desligava sua vitrola e vinha contar as últimas novidades sobre o seu projeto em se tornar DJ profissional. Mais para cima da rua morava o Roger, baixinho dos mais novos da galera, especialista em pique esconde e dos mais habilidosos no pique-pega e polícia e ladrão. No mesmo prédio tinha o Ronaldo, cria da Rocinha que ficava de férias na casa do tio (ou avô, nunca soube) que era porteiro chefe de um dos prédios. Ronaldo, botafoguense roxo, era perito em pipas, arraias, marimbas, além de ser bom jogador de futebol. Juntávamos todos e íamos chamar Gilson e Wilson, que moravam há 3 quarteirões de distância. O pai do Gilson era venerado por todos os moleques por ser mestre em bicicletas, praticamente um cirurgião a nossos olhos.
          Voltávamos ao estádio-garagem e iniciávamos a divisão dos times, que era feita por tamanho. Eu para um lado, Demizinho pro outro. Leo para um lado, André Felipe para o outro, Júlio e Ronaldo também iam para times opostos, Gilson e Wilson eram em regra nossos goleiros, embora o Leo também se aventurasse no gol (ou portão da garagem, como preferirem). Roger e algum outro moleque amigo também jogavam e a pelada se iniciava. Eram chutes tortos, de bico ou de peito de pé, que eram defendidos pelos goleiros mais hábeis de toda a rua, que gritavam com orgulho o nome do arqueiro profissional do seu time. Eu gritava "Gilmarrrr!" Grande goleiro do Flamengo e da Seleção. O Leo defendia sob a benção de Wellerson, arqueiro tricolor. Ronaldo fazia pontes exaltando Wagner, eterno goleiro alvi-negro. Não haviam vascaínos nessa pelada, mas quando algum se aventurava pelos nossos lados, Carlos Germano era lembrado pelo eventual pequeno cruz-maltino. O futebol era jogado sem preocupação, com gritaria, gargalhadas e reclamação, mas com poucos palavrões. Palavrão naquela época era motivo para ficar de castigo e não descer para brincar no dia seguinte, então ninguém se atrevia a proferir palavas daquele teor. Os palavrões vinham das janelas, quando as acertávamos e sumíamos instantaneamente como passe de mágica. Ao perna-de-pau que fez a burrada de isolar a bola na casa do vizinho, cabia a dura tarefa de ir sozinho bater na porta e pedir a bola de volta para o vizinho. A mais temida era Dona Fayga, senhora judia de 350 anos que morava no segundo andar e conhecia mais palavrões que um marinheiro filho de um casal de feirantes. Seus gritos ecoavam em nossas cabeças a ponto de passarmos correndo e em silêncio pelo segundo andar. A maior prova de coragem era tocar a sua campainha e sair correndo. A própria proximidade com a porta já nos dava arrepios, tamanho pavor que tínhamos por aquela senhora que mal conseguia andar da sala para o banheiro.
          A pelada terminava na hora do almoço, onde as mães saíam de suas casas e faziam a segunda convocação, Tia Rita, Dona Marizete, Seu Carlos e Tia Goretti (minha mãe) gritavam nossos nomes e íamos com a fome de náufragos devorar nossos pratos de arroz, feijão, bife e batata-frita regados a coca-cola gelada. De tarde era a vez das sessões de Super-Nintendo. Fazíamos um rodízio não-verbal e nos divertíamos horas e horas com Super Mario, Fifa Soccer, International Superstar Soccer, Street-Fighter, Mortal Kombat e Mario Kart, além de outros tantos jogos. Os mistos quentes preparados, e a coca-cola sempre presente eram o combustível de copas do mundo, grandes prêmios de fórmula um, lutas virtuais e aventuras na garupa de um dinossauro. Aos poucos, ia dando o horário de irem para casa jantar, cada um voltava ao seu ninho sabendo que no outro dia haveria uma repetição daquela mágica rotina que hoje nos causa um sorriso feliz por ter vivido tudo aquilo e um olhar triste da saudade daquele tempo que não volta mais.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Moby Dick (FINAL)

          Anoiteceu. Dentro da colmeia não se vê a luz do dia. Chegam cedo, nos primeiros raios de luz, e vão embora quando a lua já reina soberana. São senhores, senhoras, meninos e meninas sacolejando dentro da máquina como meia encardida. O ônibus corta a cidade maravilhosa com aprovação dos morcegos que voam por entre as amendoeiras centenárias. Aquilo tudo ganha aspecto de procissão. Rostos cansados, abatidos, com fome, com frio. Fora isso, um clima de velho oeste também é notado. Olhos atentos, desconfiados. Parecem estar relaxados, mas usam o rabo do olho para certificarem-se que não são ameaçados. Ônibus de noite é assim, ninguém confia em ninguém.
          O ronco da máquina de lavar ecoa na cabeça de todos, é o barulho dominante. A Avenida Niemeyer transforma-se em um trem fantasma, onde kombis, carros e motos passam rente, zunindo ao fatiar o ar. Seus faróis iluminam precariamente aquela pista que serpenteia circundando a pedra, num movimento semelhante ao do mestre-sala acompanhando a porta-bandeira. A cada curva, os corpos são jogados para um lado e para o outro, e a lavagem daquelas peças de roupa, com rugas, manchas e cansaço prossegue pela noite. O passageiro do ônibus noturno nada mais é que uma camisa, uma luva, uma meia nas mãos do patrão. Usam, amarrotam, esgarçam. Jogam na máquina e deixam-os secando nos seus barracos, suas casas, seus apartamentos, para no outro dia assumirem a árdua tarefa de serem úteis novamente. O prêmio vem através de migalhas. O operário de uma linha de montagem automobilística ganha o equivalente proporcional a um pneu. O arrumador de um grande hotel de luxo ganha uma toalha, e por aí vai. É a lógica do mundo moderno. As pessoas se reduzem à sua função, a um objeto. O faxineiro, sem mentir, poderia declarar que é uma vassoura. O mecânico é um alicate, o médico é uma seringa. São apenas números e funções.
          Depois de tantos solavancos, o monstro de ferro começa a vomitar. Os que moram mais perto do trabalho vão descendo aos poucos, enquanto os que moram no ponto final já vão conquistando alguns minutos de sono rumo ao leito merecido. O mesmo cidadão que dorme no ônibus voltando para casa é aquele que é taxado de desleixado e incompetente ao chegar atrasado. Moram a uma, duas, quatro horas do trabalho, fazem baldeação, se espremem, se comprimem, se censuram para poder trabalhar, e são vistos como alguém sem comprometimento por um chefe que chega em 20 min ao trabalho dentro do carro do ano.
          Aos poucos o ônibus se esvazia, sobram lugares. O ponto final se aproxima, mas isso é um mero detalhe. Cada passageiro tem seu próprio ponto final, que é a hora de descer. No ônibus da vida é um pouco diferente. O ponto final não somos nós que decidimos. Um dia o Motorista para, abre as portas e diz: "É aqui."  Você é obrigado a descer, e a vida continua. Podemos ter dificuldades na vida, vislumbrar de perto a porta de saída, mas é em vão. Quem abre a porta é o Motorista, o Guia. Enquanto esse momento não chega, vamos viajando nesse ônibus gigante, redondo e azul que é o planeta Terra. Um ônibus que não para para ninguém, mas que todos, vivendo ou apenas vivos, subimos e buscamos um lugar para ficar. Se vamos olhar para o chão, para nossos próprios pés, reclamar das sacudidas da vida, ou olhar pela janela e aproveitar a infinidade de coisas maravilhosas que passam por nós durante o trajeto, aprendendo com elas, nos tornando melhores, e nos segurando firmes durante os buracos pelo caminho, cabe a nós escolher. Já dizia o ditado: Na vida, tudo é passageiro, menos o cobrador e o motorista.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Textinho de quinta

          Quinta, hoje tem feira. Evento semanal das mais diversas ruas, com algumas peculiaridades que podem ser exploradas pelo vosso humilde cronista. Na rua Ministro Viveiros de Castro (rua com nome de juiz) em Copacabana, quinta-feira é sinônimo de acordar cedo com o barulho de kombis e caixotes. Lá pelas cinco começa a montagem daquele shopping improvisado, ao ar livre e sem vidros entre o consumidor e a mercadoria. Lá, o freguês pega, apalpa, cheira e até come o que pretende comprar. Já houve caso de ter passado por lá e ter comido uma senhora salada de frutas só em amostras de produtos. Morangos, bananas, ameixas, melões,  todos estão lá com suas cores, cheiros e gostos característicos. Volta e meia o jornal da tarde faz matéria sobre economia levando um senhor careca, com a camisa de botão por dentro da calça para pesquisas de preço na feira. Coitado. Preço na feira é negociado. Placa com preço serve pra quem não frequenta a feira. Feirante conhece o comprador assíduo pelo nome, o lote de três reais vira "dois é cinco" e a duzia de bananas vem com quinze. Pro sujeito careca, engomado e quadrado, o preço varia pra cima. Cara de rico, preço de rico. Mesmo uma feira em Copacabana, "bairro grã-fino",  tem dessas coisas.
          Mais pra ponta da feira, um combate indireto: o vendedor de peixes de um lado e o de rosas do outro. São  vermelhos, xereletes, trutas, namorados  (aqui mortos e longe de serem poéticos, apesar do encanto que proporcionam se combinados com arroz, batatas e o tempero certo) que enfrentam rosas, cravos, girassóis e copos de leite. A batalha dos cheiros é benéfica para ambos: o florista pega a rebarba dos clientes do peixeiro  (não creio que muita gente vá à feira com intuito único de comprar margaridas, por exemplo) e ao mesmo tempo cobre os peixes deste com aroma mais agradável.
          Em barracas menores são vendidos segmentos alternativos ao hortifrutigranjeiro, bela palavra. Há a banquinha dos pequenos utensílios domésticos, com ralos, colheres de pau, batedores de ovos e carnes, desentupidores de pia, bicos de torneira e mais. Junto dela temos a curiosa barraca do rastafari que vende camarão (que se interpretado fora de sua forma literal pode causar problemas) e a de especiarias logo ao lado, que se existisse há uns 511 anos atrás poderia mudar o rumo da nossa história.
          Na barraca da granja, cenas fortes. Galinhas depenadas, penduradas pelo pescoço dão exemplo aos parentes rebeldes e subversivos. Duzias e mais duzias de ovos se empilham como um edifício de apartamentos e mais ao  lado uma grande corda de linguiças posta à vista semelhante a uma decoração natalina. Passo rápido e por trás da feira. Hoje não posso parar. No passo ligeiro percebo a mudança de tons entre as barracas, como alas de uma escola de samba. O enredo e o cântico variam pouco. Cantos de sereias  carecas, bigodudas e suadas pedindo um segundo de sua atenção em troca de um lote de laranjas, uma posta de salmão ou  um  molho de couves. Música, sem dúvida.
          Vou embora sabendo que a parte mais triste da feira ainda vai ocorrer. Lá pelas cinco da tarde, quando os fregueses já se foram na maioria, e os garis tomam conta, é hora da xepa. Quem não tem dinheiro espera a xepa e garimpa entre as sobras o que ainda serve. Tomates machucados, laranjas com a casca manchada, alfaces amassados. Lixo pra uns, tesouro pra outros. A manga ferida após o tombo jaz esquecida no meio fio. E pensar que horas antes era uma das estrelas do espetáculo. Agora é esquecida, perdida, inútil. Mal agradecidos. Quantas outras não foram vendidas com a ajuda de sua presença próxima a evidenciar beleza e cheiro? Tal como a estrela de televisão com seus 15 minutos de fama, a coitada da fruta é enxotada pelo vassourão do gari que cumpre o seu dever. Às seis, vestígios da feira ainda estão presentes, ao notar poucas folhas de hortelã na calçada, e o asfalto molhado pela água que o caminhão da Comlurb trouxe para despachar o grosso da sujeira. A aparencia geral é do salão de carnaval em quarta-feira de cinzas. A colombina, manga carlotinha, chora dentro da caçamba, com saudades do espetáculo que se repetirá sem ela, toda quinta, em Copacabana.