segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A máscara secreta.

Dez horas da manhã. Samuel acorda, mas seus olhos ainda estão fechados. Seu primeiro pensamento do dia é um debate interno sobre o que fazer naquela manhã. Praia com os amigos e videogame online em casa são as duas opções favoritas. Apesar de ser segunda-feira, isso nunca foi nem será motivo para se ausentar das coisas que gosta, já que vem de berço de ouro. Antes de Cleide, sua empregada, bater na porta de seu quarto com a tradicional bandeja de prata e o famoso sanduíche de peito de peru com cream cheese acompanhado de vitamina de morango, Samuca veste sua roupa mais característica, aquela que todos o reconhecem sendo até que algumas pessoas nunca o viram sem ela: a sua cara de insatisfação.
Como uma máscara moldada para ele, todos os dias vestia a mesma expressão facial, que abria todas as portas que queria. Antes, quando pequeno, gostava de chorar. Sua mãe, economista renomada, se desesperava com aquele pranto dolorido de seu único filho. Por se submeter a uma rotina de aulas, palestras, consultorias e entrevistas, pouco tempo sobrava para o pequeno Samuel. Se tornou uma espécie de gênio da lâmpada para o próprio filho, uma gênia pessoal, que atendia a todos os desejos que o dinheiro pode realizar. Passou o tempo e ele percebeu que o choro tinha perdido seu efeito, e ficava feio para um homem que já havia visitado diversos prostíbulos conseguir as coisas na base do esperneio. Criou assim a máscara da insatisfação. Os olhos caídos, como que cansados e olhando para o vazio, a boca com os lábios encostados um no outro com os cantos levemente puxados para baixo numa precisão matemática o deixavam com uma cara de quem não está satisfeito com nada. Para Samuca, aquela cara era a chave do poder. Ele pensava que aquela cara era a de alguém que estava furioso e estava se controlando para não destruir tudo à sua volta. Achava que sua máscara impunha medo, que intimidava o resto do mundo, pobre e sem poderes. Mal sabia que a grande maioria tinha pena dele. Aquela cara era a de alguém que não cresceu, que não sabia o que era dor, o que era fome, o que era calor ou frio. Todos atendiam suas vontades não só por serem empregados ou prestarem serviços à sua família, mas também por tentarem de alguma forma darem alguma alegria ao menino que não sabia sorrir.
O sol estava fraco, anunciando a mudança de tempo que certamente faria da terça-feira um dia chuvoso e cinza. Mas a praia daquela segunda já estava garantida. Sabia ele que a piscina do condomínio estaria em manutenção, coisa que ocorria todo primeiro dia útil da semana, como previsto nas regras internas do prédio. Ele não gostava de levar muitas coisas para a praia. Vestiu uma bermuda, seu chinelo e uma camisa de treino do Real Madrid, trazida da Espanha por um tio, que recebeu sua habitual cara neutra como forma de agradecimento. Apesar de gostar de praia, de ver garotas usando trajes mínimos, raramente ia até lá por achar algo que todos podem fazer muito desinteressante. Fora que a cor branca leitosa de sua pele, cultivada a longos anos de confinamento em casa e em shopping centers contribuiu para que não pudesse ficar exposto ao sol por muito tempo, tendo como punição uma vermelhidão ridícula e uma dor que o deixava ainda mais insuportável. Ao sair do prédio recebeu diversas saudações de 'bom dia', respondendo cordialmente balançando a cabeça para cima e para baixo, mas sem tirar a do rosto sua máscara favorita.
O caminho para a areia foi tranquilo. Apenas uma rua o separava de seu destino. Apesar dos avisos de Cleide, fora sem usar o protetor solar nem o boné. Optou apenas pelo seu óculos escuros que o fazia sentir-se o próprio Exterminador do Futuro. Gostava da ideia de pegar uma metralhadora giratória e matar todos à sua volta. Era fã do filme, e fã do robô que usava o mesmo rosto sempre. Se identificava. Chegou em frente ao posto dez e localizou seus companheiros de praia, Ana Inês e Fernando, aguardando por ele. Apesar de serem gêmeos, o casal divergia entre gostos e opiniões. Aní era a amigona da galera do colégio. Conhecia o segredo da maioria das meninas e sabia tirar proveito disso. Por ser gordinha, era sempre a segunda opção em festas, e acabava aproveitando a rebarba quando saia com as amigas mais bonitas, ficando com primos, amigos e outros tipos de azarados que curtiam as saídas em dois casais, como gostava de arranjar. Desde cedo já mostrava vocação para organizadora de festas e eventos, coisa que seria de alguma serventia para os negócios do pai, sócio de uma cadeia de rádio. Já Fernando era o sujeito mais desligado que conhecera. Nunca expressava opinião, apesar de estar em todas. Tudo era decidido pelos outros e ele se acostumou a viver assim. Era amigo dos valentões do colégio, que o mantinham próximo pelo seu prestígio como filho do dono da Rádio Tupã e pelas caronas no seu Honda Civic zero, presente de dezoito anos. Obviamente, foi para a praia arrastado pela irmã, que achava Samuel até legal, mas bem estranho. Estavam ali para marcar a festa de aniversário surpresa de Rebeca, a menina mais linda e popular da faculdade, sonho de consumo de oito entre dez rapazes.
Ao saber que Rebeca estaria ali com eles, o coração tímido e frio de Samuca resolveu se manifestar. Precisava fazer algo para chamar atenção daquela princesa. Sabia que não era o mais bonito, o mais forte ou o mais esperto com as palavras. Podia impressionar com alguma atitude. E foi aí que teve a idéia de pegar onda quando Beca chegasse. Pediu a ajuda de Fernando para que comentasse e o apontasse na água, e naquele momento Samuel iria protagonizar sua façanha aquática, mostrando coragem, perícia e sagacidade. Tudo isso daria certo se o mar não estivesse revolto, se Samuel se desse conta que aprendeu a nadar em piscina e se Fernando não fosse tão desligado. Quando ela chegou, foi recebida calorosamente por Aní, que disfarçando o real motivo do encontro, iniciou um longo debate sobre cores de esmalte, roupas, lugares para se passar o carnaval e é claro, rapazes. Fernando, como sempre, desligou-se do mundo exterior ao ligar seu videogame portátil, colocando fones no ouvido e transferindo sua atenção para o jogo. Quando as meninas estavam bem distraídas entre tons de tintura e roteiros para festejar, Samuel levantou e pediu para que olhassem suas coisas, pois iria mergulhar. No exato momento que falou isso, uma onda poderosa se chocou com a areia, fazendo um barulho assustador. "Perfeito!" - pensou.
Aní sabia que Samuca nadava bem, já o viu dezenas de vezes no clube ou em seu condomínio disputando corrida com os outros garotos. Rebeca ficou curiosa para ver o desempenho daquele magrelo e branquelo desafiando aquele mar gigante. Samuel era conhecido entre o pessoal do condomínio pela sua velocidade na água. Apesar de magro, nadava com boa velocidade, e costumava ganhar os desafios entre amigos. Sendo assim, passou da arrebentação com facilidade, e também com um pouco de sorte, já que naquele momento o mar havia se acalmado. Logo surgiram as ondas e foram ficando cada vez maiores. E lá foi ele em uma onda que achou segura. Pensou em Fernando apontando para o mar, em Aní e Rebeca virando e assistindo ele deslizar por aquela parede de água em movimento. A próxima coisa que sentiu foi uma dor muito forte na perna, ainda dentro da onda. Mal havia começado a viajar por aquela massa aquática, sua batata da perna esquerda se endureceu, e o que era expectativa se tornou pânico. A onda se desenvolveu mais do que o esperado, e a parede adquiriu um tom verde escuro mostrando ser a primeira de uma série de várias outras do mesmo tamanho. O campeão de natação do condomínio agora era um mínimo ponto despencando do alto daquela ladeira molhada, como se fosse arremessado para o fundo do mar.
O barulho foi tão grande que encerrou a conversa de Rebeca e Aní sobre seriados americanos. Fernando só então se tocou do prometido e olhou chocado para a água, onde apareciam os braços de Samuca lutando contra aquela água espumosa e revolta, típica de uma onda recém desfeita. Os três correram para a beira e gritaram por ele, mas pelo barulho do mar não foi capaz de ouvi-los. Atrás dele se formava a segunda e a terceira ondas da série, bem maiores que a primeira. Quando Samuel conseguiu enxergar a areia, viu Aní, Fernando e Rebeca acenando para ele, desesperados, tentando avisar do perigo que crescia fora de sua visão. Para o menino dentro do mar, estava cumprido o seu objetivo. Rebeca finalmente o notara, e assim mostrou para eles, mesmo de longe, uma máscara que raramente havia usado, e pela primeira vez sentia necessidade daquilo. Sorriu. Foi engolido pela montanha oceânica e pelas outras duas que sucederam. Quando o salva-vidas da praia conseguiu levá-lo para a areia, ainda sustentava a mesma face feliz, com os olhos fechados de quem tem um sonho bom.

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