sexta-feira, 9 de março de 2012

Aventura no mundo baixo.



Nos primeiros cinco, a descoberta do pequeno mundo que nos cerca. O que é seu e o que é de outros, suas mãos, pés, nariz, boca. Nossas primeiras riquezas, os brinquedos. As crianças também começam a desenvolver hierarquias a partir de características físicas e psicológicas. O mais bonito e a mais bonita surgem. O de temperamento mais agressivo começa a ser temido e ganha traços de líder, impondo suas vontades através de empurrões, beliscões, mordidas, tapas, arranhões e gritos. Por mais que existam adultos por perto para impedir tais práticas, assim como fazem os gatunos do mundo real adulto, os valentões agem na surdina, ameaçam, chantageiam, mentem e manipulam. Tudo isso com bochechas rosadas e botas de super-herói.

O dono da bola aparece como um dos primeiros ricos. Meninos de séries superiores se associam a ele por puro interesse de jogar, enquanto o dono aproveita o status de se incluir, ainda que parcialmente, num grupo mais avançado do que os outros de sua idade. Daí aparecem os primeiros contratos sociais. Bola por segurança, irmã por acesso ao grupo, etc. As demonstrações de bravura também são notadas surgindo na mesma época. Joelhos ralados, cotovelos esfolados, queixos abertos, dentes-de-leite caídos... cicatrizes de guerra. São os destemidos que pulam, que correm, que desafiam as previsões astrais que mães, avós e "tias" fazem. A famosa frase "você vai se machucar" não soa como punição, e sim como recompensa. Uma cicatriz bem feia é um grande troféu. Quando mais dolorosa pareça a ferida, mais valente é considerado o seu portador.

Não pensem que o dinheiro é o que nos difere do mundo dos pequenos. Ele também está lá, só que em alguns casos mais colorido, em outros mais saboroso. Dependendo da escola ou do condomínio, o dinheiro pode ser lápis, lápis de cor, canetinha, botões, figurinhas, bolinhas de gude... e comida. O lanche que recebe diariamente dos pais se torna uma espécie de salário. As cotações variam pelo sabor e quantidade da comida. Uma mordida de um sanduiche da cantina do colégio vale uma boa mãozada em fandangos e cheetos, ou uns 2 ou 3 biscoitos recheados. A troca diminui de quantidade proporcionalmente para pães de queijo ou sanduiches caseiros. O recreio vira uma espécie de bolsa de valores onde o pequeno que tiver a merenda certa visita um mundo de sabores através do escambo, e aquele que possui um lanche com muitas verduras, nutritivo, com queijo branco e pão árabe, um pobre coitado.

Pouco mais tarde as hierarquias começam a ficar mais complexas. Surgem os peritos. O melhor no futebol, o melhor em queimada, o melhor no voley, no ping-pong, no totó... O mais rápido leva vantagem nos diversos esportes, nos piques e em fugir de surras. Os mais bonitos chamam atenção das meninas mais velhas. A beleza infantil nada tem a ver com sexualidade. São garotinhos e garotinhas que parecem ter saído dos desenhos ou de algum conto de fadas. O poder proporcionado pelo dom da beleza pode usar usado tanto para o bem quanto para o mal. O menino bonito acaba sendo adotado como filho pelas meninas de séries superiores. Conheci alguns meninos de 6 ou 7 anos que faziam cara de anjo para as altonas, e depois de convencidas de que aquele ser rosado era lindo, tornavam-se seu exército. Os lindinhos impunham impostos de biscoito ou apreensão de giz de cera, sob ameaça de ser acusado de lhes ter machucado, o que despertaria a ira de mil menininhas.

Irmãos mais velhos eram úteis a maioria das vezes... a não ser que seu parente fosse o chacota da turma... aí o esforço para ganhar status seria dobrado, pois a família ja teria uma pequena tradição. O inverso geralmente também ocorria. A titularidade de valentão podia também ser transmitida pelos laços de sangue. Pense no poder de um menino de segunda série com acesso à força militar da sexta? O caçula era muitas vezes tido como mascote da gangue do irmão maior, onde teria acesso a informações, xingamentos e técnicas de terrorismo infinitamente superiores às praticadas em sua série de origem.

Finalmente existia também o lado negro da força. Assim como criminosos são temidos pela quantidade de passagens pela polícia e o teor de seus delitos, na escola existem os mal falados. Aqueles que as mães chamam de "má influência". Sim, um menino de 5, 6 anos pode ser má influência. É dele que nasce o "por que?" que se levanta diante de uma ordem. É de lá que surge a audácia do "não" aos pais, seu primeiro governo. Questionamentos nessa idade são considerados uma ameaça à soberania patriarcal e que devem ser evitados. Os mais bagunceiros da turma colecionam advertências e comunicados. No meu colégio existia até um quadro de recordes e competíamos pelo posto de menino mais bagunceiro. Minhas armas eram a hiperatividade, os questionamentos e as notas altas. Sim, pois apesar de criar um escarcéu a cada lição de matemática, a nota do boletim era diretamente proporcional ao stress causado ao professor. Eu era um daqueles capetinhas de colégio que frequentavam psicólogas, viviam brigando, e todos os professores sabiam o nome. Éramos realmente famosos. Nossos ídolos eram Kevin, de Esqueceram de Mim, Denis, o pimentinha e o Pestinha. Os feitos podiam ser individuais ou em grupo. Como aquela vez em que um bando de delinquentes que invadiu a clausura das freiras, ou aquele (eu) menino que fugiu do colégio correndo pela porta da frente, deixando o ofegante e barrigudo zelador desesperado. O tradicional "corredor polonês" no recreio e aquela vez que fizeram xixi na garrafa de guaraná, que foi posta na geladeira e oferecida para uma menina beber também não serão esquecidas. Mas de todas as ações anarquistas, a que me lembro com mais carinho e a que mais faz falta é a que dá o nome deste conto que estão lendo.
Ocorria com frequência em festas de aniversário uma brincadeira chamada carinhosamente de "aventura". Consistia em numa festa de aniversário chata, explorar sem rumo os limites do lugar festivo, que podia ser um clubinho, um prédio ou até a própria escola. Comecei a estudar em um colégio tradicional de freiras e fui lá que aprendi a ser, como diria mestre Mallandro, "um capeta em forma de guri". O colégio alugava sua quadra poliesportiva para festinhas juvenis inocentes. Os culpados éramos nós, que corríamos pelo alto daquelas ladeiras imensas com nossos cadarços desamarrados e íamos visitar nossas salas de aula desertas, no breu. Era como uma realidade alternativa. O mesmo lugar que estudávamos diariamente ganhava um tom tenebroso sem luz nenhuma e com um silêncio sinistro. Qualquer barulho, grito ou rangido resultava no estouro da boiada. Uma multidão de crianças com medo correndo de volta o mais rápido que podiam, cm aquela sensação mista de adrenalina por ter escapado do monstro imaginário e alívio de encontrar novamente com os nossos eternos super-heróis: papai, mamãe, tios e tias.