quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Moby Dick (parte I)


   Como é dolorosa a espera por quem se quer bem. O nosso encontro diário não necessita de marcações. De segunda a segunda nos encontramos, com a mesma felicidade, o mesmo alívio quando nos avistamos, e a mesma aflição quando há um atraso. De longe, o reconheço. Estico o braço direito em direção ao nada. Ele se aproxima, faço sinal de positivo com o dedão. Criatura orgulhosa que é, finge não ter me visto e passa por mim devagar mas pára alguns metros depois, parecido com uma mulher se fazendo de difícil. O ônibus abre a porta e subo. Assim começa a história.
          O conheci ainda criança, levado por meus pais aos mais diferentes destinos. Sentia medo daquele colosso de metal, que rosnava alto, chacoalhava, nos fazendo equilibristas dentro de seu organismo. Associava aquilo a uma baleia, que nos engolia e viajávamos dentro de seu estômago, assim como faziam os personagens de desenhos animados. Com o tempo fui crescendo e o medo mudou. Seu tamanho e movimento caótico não me impressionavam mais. Aos 13, o maior medo era ser engolido pela baleia errada, indo parar em alguma terra distante, inacessível, sem volta. Além disso, temia os outros passageiros. Ônibus nos anos 90 eram alvos constantes de assaltos, mortes, violência. Atualmente ao coisas melhoraram um pouco neste âmbito, e o que eram encontros casuais se tornaram uma relação de dependência.
          Subo seus degraus e dou bom dia ao motorista. Um dos poucos 'bom dias' sinceros que ainda existem. O significado desse termo esvaziou-se ao longo do tempo, de modo que 'bom dia' não é mais desejar que o destinatário tenha um dia produtivo, positivo, bom. Dar 'bom dia' é um 'oi' mais longo. Se dá bom dia para qualquer um, até para o seu pior inimigo. Bêbados dão bom dia aos postes, idosos dão bom dia para a televisão que passa o noticiário. Para o motorista do ônibus, meu bom dia é sincero. Deste momento até a hora de eu saltar (ou soltar do ônibus, no popular), ele é o responsável pela segurança minha, dele e de todos em volta, incluindo os que estão nas calçadas. Se recebo o bom dia de volta é bom sinal, mesmo que seja só um 'oi' mais longo. Posso ser ignorado, mas a minha parte eu fiz.
          Logo em seguida lá está a peça mais humana da máquina: o cobrador. Ao contrário do que pode parecer, o cobrador é mais querido que o motorista. É dele o dever de nos tirar o dinheiro em troca do serviço de trasporte, mas de certa forma é ele que faz o papel de recepcionista do ônibus. O 'trocador' nos informa se o carro vai passar na rua que desejamos, nos ajuda a parar no ponto certo caso não conheçamos o trajeto. Pode vir dele também o nobre ato de dar descontos na passagem de algum necessitado ou de avisar ao 'piloto' que ainda tem gente pra descer, quando o ônibus lota. Além disso, em grande parte do tempo ele é passageiro como todos nós, podendo conversar um pouco e tentar tirar o peso daquela jornada diária à qual se submete. Quanto ao motorista, não lhe é permitido conversar (só o necessário, diz o adesivo colado no vidro). Apesar disso é o que mais se comunica com todos. Atrás de sua cadeira, fica sua bandeira. Pode ser de times de futebol, do santo da devoção ou somente colorido. É sua maneira de dar uma identidade ao seu 'escritório'. Deixar aquele ambiente impessoal, cinza, um pouco mais colorido.

          (continua depois, pois se continuar escrevendo, perco meu ônibus)

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Big Bang

Hoje acordei diferente. Clichê ou não, essa frase deu o tom do dia que se seguiu. Acordei partido ao meio, como se uma metade de mim estivesse fora de sincronia com o resto do corpo. Minha suspeita se confirmou. O ouvido esquerdo, ferramenta utilizada impunemente para atender telefonemas, ouvir reclamações e cobranças, atentar às campainhas de portas que devia abrir, esse meu dispositivo tão necessário hoje acordou diferente. Uma mão invisível o cobria e o som percebido era abafado, tampado, oprimido por uma barreira misteriosa. Sensação horrível e desesperadora a de ficar parcialmente surdo de um lado. A cabeça pende, o equilíbrio se fragiliza, assim como o psicológico se abala. De imediato surgem as tentativas vãs de reparar aquilo que nos atrapalha o amanhecer rotineiro. Levantar com um pedaço faltando, se sentir um carro com pneu arriado. Água, dedo mindinho, inúteis. Cotonete não há. Solteiro que se preze não tem tal coisa à disposição. Sento na beirada da cama, sentido o mundo pesando para a esquerda relembro de episódio semelhante no fim da infância. Acúmulo de cera, disse o médico àquela época. Fruto da origem européia que faz com que meu organismo a produza em anormal abundância, quem diria. Cera, lacre de cartas com brasões seculares, matéria-prima dos mini-edifícios das abelhas, elemento principal das velas de oração, inimigo número um de um ouvido desavisado. Sinto-me deficiente, de fato mas não de direito. Saio para a rua à procura de respostas e encontro várias a perguntas que nunca tinha feito até então.
O barulho do elevador, o bom dia ao zelador, a própria voz. Tudo soa apagado, desfocado, como uma televisão mal sintonizada. É como ver colorido com um olho e preto-e-branco com outro. Percebo a falta que a audição esquerda me faz. Preciso de concentração e contorcionismo para me encaminhar ao médico sem esbarrar em ninguém. Tomar o ônibus se torna desafio dos mais complexos, ação que há horas atrás era natural, impensada, automática, fácil, simples. Minha conclusão é das mais horripilantes. Estou cego do ouvido. O utilizava para enxergar o que fugia aos olhos. Os 'clicks' de abrir porta, apertar botões, a certeza de ações executadas pelos simples estampidos indignos de atenção agora despertam uma saudade desesperadora. O telefone chama ou está mudo? Já atenderam? Disseram "alô" ou foi impressão minha, talvez pela expectativa de conseguir ouvir? Nada é certeza quando se é cego para os sons. Nesse mundo tão visual, como diria Freddie Mercury, o som nos dá pistas da verdade, como uma luz no escuro das imagens. Me sinto frágil, indefeso. Não distinguir passos que te seguem, não detectar vozes que te chamam, não ouvir zunidos de coisas se aproximando com velocidade ou o esmigalhar de alguma estrutura se partindo, a audição é o olho que não dão tanta importância.
"De algo deve valer essa perda parcial e (espero eu) temporária." - digo a mim mesmo, com um otimismo um tanto aflito. Vejo o lado bom da surdez em algumas poucas coisas. Ler com menos perturbação e distração. Menos britadeiras, menos motores, menos apitos de guarda, menos latidos, menos gritos, menos burburinho... Penso na infinidade de sons desagradáveis que temos que engolir todos os dias que nos enfiam por dentro dessa janela sempre aberta para dentro de nós: propagandas, anúncios, pregações, baboseiras, fofocas, mentiras... E tudo isso me trás a sensação de ter esquecido o mais importante... de fato.
Música, senhores! O que seria de minha alma sem essa entidade, essa coisa viva que se manifesta pelo ar, força que ignora os olhos, instrumentos rudimentares, ignorantes e mesquinhos, e que faz vibrar as partículas e o vento, e nos levam para dimensões mais elevadas do espírito? O mundo seria preto e branco em essência. Monocromático, quadrado, frio, metálico. És tu música, que faz a terra dançar, um rodopio de bailarina a milhares de quilômetros por hora. O milagre da música se revela como bem primordial. A música está dentro de nós. Não precisamos do ouvido para ouvi-la, podemos tocá-la dentro de nós através de nossa mente e nosso coração, que pulsa dando o compasso de nossa existência, de nossos destinos, de nossa missão. Me surge de dentro o Bolero de Ravel, uma singela expressão de vida e existência, de despertar, gerada por dezenas de instrumentos feitos de metal, madeira, couro e cordas, que vibram, pulsam e reverberam, multiplicando notas e operando o milagre fascinante de serem fontes de energia divina, sendo em sua existência unicamente coisa morta. A música tocada é a vida renascendo do não-vivo. São asas surgindo de uma pedra, cânticos saídos de uma caixa de madeira, emoções reproduzidas no ritmar de tambores, cordas, metais. Como é bom saber que você existe, música. Não me sinto cego, me sinto abençoado por perceber o valor dessa dádiva tão comum a todos, e tão normal que é consumida como o ar que se respira. Descobri que és também ar, música, e sem você o mundo se sufocaria rapidamente num fim de movimento mórbido e estéril.
De repente um estalo forte, como um tiro. Me assusto, pelo visto o tiro eu fui o único que ouvi, pois ele ocorreu dentro da minha cabeça, de dentro pra fora, mais precisamente na parte esquerda da cabeça. Meu ouvido desentope e tudo volta a fazer sentido. As cores se encontram, a sinfonia da vida se reinicia. Acordado, desperto do pesadelo vivido naquela manhã cinzenta que agora se mostra colorida e vibrante. Agradeço à lição aprendida hoje e vou pacientemente esperar o otorrino para tirar a cera que ameaça me cegar para um dos maiores privilégios que se tem em vida.