sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Cotidiano

Soa o alarme. Insistente, sabe que você o escuta. Te provoca, te irrita, te desafia. É hora de levantar. Você já levantou, mas ainda conserva os olhos fechados, numa esperança vã de que ainda lhe tenha tempo para descansar. Tempo, Deus onipotente e onipresente. A única das forças da natureza que o homem não consegue enganar. O tempo nos falta, nos escorre entre os dedos, nos dissolve aos poucos, como gelo que derrete.
É preciso força de vontade pra encarar o que vem pela frente. Mais um dia de flagelamento. Pessoas correndo, carros gritando, barulho de motor. É a selva de pedra, a máquina, a Matrix em sua forma concreta, em concreto. Desliga o alarme, pés descalços tocam o chão. Um frio polar que vai da sola do sapato ao final da espinha. A cama parece um oásis de prazer. Macia, quente, com aura de sono. É um útero do qual todos os dias és arrancado, mortal. Agora adulto, você nasce todos os dias quando acorda, só que perdeu a capacidade de chorar, de gritar, de se indignar. O chicote que estala nas suas costas se chama "Civilização". Te arranca da cama, te joga num monstro de ferro e fogo que ronca e rosna por quilômetros até te cuspir na linha de montagem da qual você é mera ferramenta. És uma lâmpada, mortal. Quando sua luz se apagar, colocarão outro no seu lugar. És descartável, um copo de plástico com décimo terceiro e fundo de garantia. Apesar de tudo isso, você ainda vê motivos suficientes para erguer a cabeça e interpretar o papel que provisoriamente lhe foi dado. Você tem ainda um objetivo, ainda resta alguma vida na madeira do martelo que você se tornou. Pretende juntar seus cacos e fazer o que gosta, ter história ao invés de carreira. Vale a pena lutar, vale a pena brincar de ser marionete enquanto se arquiteta algo muito maior.
Vai para o banheiro, liga a luz. O dia ainda não acordou, e o breu dá lugar a uma luz dolorosamente invasiva. Sua cabeça dói, os olhos vão se acostumando aos poucos com aquela iluminação ilusória, aquela luz do dia que te cobram todos os meses. Vira-se para a pia, molha as mãos, joga água no rosto. És um resto do que já fostes, mortal. Da cabeleira rebelde, sem padrão, restou apenas o corte quadrado, limpo, reto, seco, mecânico, normal. Não tens cabelo, mortal. Sua cabeça é aparada, como grama de jardins de condomínios de prédios. A serventia é fingir naturalidade na ordem. Ainda há de chegar o dia em que nos farão carecas. O cabelo é forma de expressão como uma roupa, um livro, um discurso. Moicanos, dreadlocks, mechas, tranças, rabos de cavalo, a máquina arranca a nossa mostra de personalidade mais próxima do céu. Agora temos cabelos curtos na tesoura, coques e só. Barba nem pensar. Dá a impressão de sujeira, de descuidado, de vagabundo, de inútil. Ironicamente o filho de Deus é retratado com cabelos na altura dos ombros e barbado. A lâmina ceifa os pelos que insistem em crescer ao redor da boca. Bochechas, queixo, a parte inferior e superior aos lábios, território estéril, que como a palavra diz, não permite vida, mas que vira esterilizado e nos dá a ideia de limpo. Escova os dentes para disfarçar o hálito de fome. Ter hálito de menta é bom, um aroma de planta que foi mimetizado para uma pasta de produtos químicos que tem como objetivo nos conservar operacionais. Não se engane, mortal. Toda a inovação na área de saúde e "bem estar" é destinada a você, lâmpada, poder ficar mais tempo acesa.
Você se encara no espelho. O quadro mais cruel já pintado. O quadro que mostra decadência. Sempre atualizado. Nem a internet consegue dar noticia ruim melhor e mais rápido que um espelho. Você engordou, tem olheiras, os primeiros fios brancos dão o ar da graça. Nem trinta anos tens, mortal. És um bagaço. Uma laranja espremida pela sociedade. Sorvem teu suco com dentes de vampiro. A casca que era dura hoje está mole pela ação de dívidas, deveres, obrigações com a sociedade e valores que lhe foram impostos. Espelho. Moeda mais cruel de todos os tempos. Venderam a Pindorama por um punhado destes e o que viram refletido? O rei da natureza se viu escravo do europeu através do espelho. Hoje é animal em cativeiro. Aldeias indígenas são gaiolas, aquários, objetos de observação e entretenimento.
Já são seis. O café você comerá no trabalho, servido por eles num refeitório. Tigela de ração para cães que usam gravata ao invés de coleira. Torce para que o ônibus não demore a passar. Qualquer roupa serve, o uniforme (inibidor de identidade) está esperando por você. Logo serás um glóbulo vermelho nas artérias da máquina movida a frustração, cobiça e dinheiro. Antes de sair, olha para uma foto com a avó na geladeira, para uma garrafa artesanalmente pintada pela namorada e para o retrato do Cristo Redentor. Se lembra então dos seus objetivos, das suas metas, e da recompensa por trás disso tudo. Respira fundo e toma fôlego, como um mergulhador. Ao invés de água, cai de cabeça na rotina. O tempo o chama e seja o que ele quiser. Bom dia.

sábado, 3 de setembro de 2011

O último vôo.

Metrópole, Rio de Janeiro, Copacabana. Prédios se enfileiram em frente à praia, como uma arquibancada onde os espectadores são os altos pilares de concreto e o mar é o palco do espetáculo. Lá pela quarta ou quinta fileira de prédios, mais para dentro do bairro, um menino se debruça na janela do terceiro andar. Deve ter sete, oito anos no máximo. Sua mãe fora de casa, a empregada lavando roupa despreocupadamente enquanto o menino já está do umbigo pra cima para fora do parapeito.
Despreocupado, sem medo das rajadas de vento, sem medo da velha grade que servia de proteção quando era mais novo, mas que agora se tornou enfeite, dispositivo obsoleto em conter a curiosidade e a inquietude desta criança que gosta muito de super-heróis que voam, aviões de papel, e todo o tipo de coisas que têm desprezo pela lei da gravidade. Já sonhara algumas vezes com seus amigos o chamando lá embaixo para jogar bola, e ele se jogava da janela, caindo em pé, sem se machucar, para encurtar o caminho. Sonhos recorrentes... Voar com Peter Pan, olhar a cidade lá de cima com uma donzela no colo como Clark Kent faria, dar loopings no ar pilotando o tapete do Alladin...
O tempo está bom lá fora. Uma brisa acaricia seu corpo como um amigo que lhe dá a mão para subir um degrau mais alto. Os pombos da cidade passam perto da janela, fazendo curvas e movimentos de aterrissagem. O cartucho do jogo de aviões do Super Nintendo ainda está quente, recém jogado. A empregada escuta Leandro e Leonardo no rádio, e está terminando de torcer as últimas peças de roupa, enquanto o menino se sente cada vez mais leve, olhando a distância entre ele e o chão. É como se voasse parado, como se flutuasse. Não sente o peso de seu corpo. Olha para os prédios vizinhos imaginando-se decolando e imitando os pombos, visitando cada hora uma cobertura, uma janela, um aparelho de ar-condicionado.
Um momento de distração da empregada, uma visão fugaz... Algo cai pela janela. O barulho do impacto com o solo ecoa no vão que fora utilizado como caminho para o encontro com o chão. Um barulho desagradável, barulho de destruição, um barulho que não gera bom pressentimento à doméstica, que agora larga o que está fazendo e se dirige para a sala, onde tem uma visão diferente do que é acostumada. Duas linhas marrons dançam no ar, gêmeas, embaladas pelo sabor do vento. Elas são um pouco mais grossas que macarrão, mas brilham. O sol reflete em suas curvas e o brilho fica percorrendo o corpo daquelas linhas marrons metálicas... Algo que ela demora a reconhecer e quando consegue sua cara muda rapidamente a fisionomia, de estranheza e curiosidade para terror, horror, espanto. Corre para a janela, olha para baixo. Lá ao fim da linha jaz inerte, imóvel, aos pedaços... Sua fita preferida do Zezé de Camargo e Luciano.