quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Textinho de quinta

          Quinta, hoje tem feira. Evento semanal das mais diversas ruas, com algumas peculiaridades que podem ser exploradas pelo vosso humilde cronista. Na rua Ministro Viveiros de Castro (rua com nome de juiz) em Copacabana, quinta-feira é sinônimo de acordar cedo com o barulho de kombis e caixotes. Lá pelas cinco começa a montagem daquele shopping improvisado, ao ar livre e sem vidros entre o consumidor e a mercadoria. Lá, o freguês pega, apalpa, cheira e até come o que pretende comprar. Já houve caso de ter passado por lá e ter comido uma senhora salada de frutas só em amostras de produtos. Morangos, bananas, ameixas, melões,  todos estão lá com suas cores, cheiros e gostos característicos. Volta e meia o jornal da tarde faz matéria sobre economia levando um senhor careca, com a camisa de botão por dentro da calça para pesquisas de preço na feira. Coitado. Preço na feira é negociado. Placa com preço serve pra quem não frequenta a feira. Feirante conhece o comprador assíduo pelo nome, o lote de três reais vira "dois é cinco" e a duzia de bananas vem com quinze. Pro sujeito careca, engomado e quadrado, o preço varia pra cima. Cara de rico, preço de rico. Mesmo uma feira em Copacabana, "bairro grã-fino",  tem dessas coisas.
          Mais pra ponta da feira, um combate indireto: o vendedor de peixes de um lado e o de rosas do outro. São  vermelhos, xereletes, trutas, namorados  (aqui mortos e longe de serem poéticos, apesar do encanto que proporcionam se combinados com arroz, batatas e o tempero certo) que enfrentam rosas, cravos, girassóis e copos de leite. A batalha dos cheiros é benéfica para ambos: o florista pega a rebarba dos clientes do peixeiro  (não creio que muita gente vá à feira com intuito único de comprar margaridas, por exemplo) e ao mesmo tempo cobre os peixes deste com aroma mais agradável.
          Em barracas menores são vendidos segmentos alternativos ao hortifrutigranjeiro, bela palavra. Há a banquinha dos pequenos utensílios domésticos, com ralos, colheres de pau, batedores de ovos e carnes, desentupidores de pia, bicos de torneira e mais. Junto dela temos a curiosa barraca do rastafari que vende camarão (que se interpretado fora de sua forma literal pode causar problemas) e a de especiarias logo ao lado, que se existisse há uns 511 anos atrás poderia mudar o rumo da nossa história.
          Na barraca da granja, cenas fortes. Galinhas depenadas, penduradas pelo pescoço dão exemplo aos parentes rebeldes e subversivos. Duzias e mais duzias de ovos se empilham como um edifício de apartamentos e mais ao  lado uma grande corda de linguiças posta à vista semelhante a uma decoração natalina. Passo rápido e por trás da feira. Hoje não posso parar. No passo ligeiro percebo a mudança de tons entre as barracas, como alas de uma escola de samba. O enredo e o cântico variam pouco. Cantos de sereias  carecas, bigodudas e suadas pedindo um segundo de sua atenção em troca de um lote de laranjas, uma posta de salmão ou  um  molho de couves. Música, sem dúvida.
          Vou embora sabendo que a parte mais triste da feira ainda vai ocorrer. Lá pelas cinco da tarde, quando os fregueses já se foram na maioria, e os garis tomam conta, é hora da xepa. Quem não tem dinheiro espera a xepa e garimpa entre as sobras o que ainda serve. Tomates machucados, laranjas com a casca manchada, alfaces amassados. Lixo pra uns, tesouro pra outros. A manga ferida após o tombo jaz esquecida no meio fio. E pensar que horas antes era uma das estrelas do espetáculo. Agora é esquecida, perdida, inútil. Mal agradecidos. Quantas outras não foram vendidas com a ajuda de sua presença próxima a evidenciar beleza e cheiro? Tal como a estrela de televisão com seus 15 minutos de fama, a coitada da fruta é enxotada pelo vassourão do gari que cumpre o seu dever. Às seis, vestígios da feira ainda estão presentes, ao notar poucas folhas de hortelã na calçada, e o asfalto molhado pela água que o caminhão da Comlurb trouxe para despachar o grosso da sujeira. A aparencia geral é do salão de carnaval em quarta-feira de cinzas. A colombina, manga carlotinha, chora dentro da caçamba, com saudades do espetáculo que se repetirá sem ela, toda quinta, em Copacabana.

domingo, 13 de novembro de 2011

Moby Dick (parte III)

Ao lado do banco, a janela. A janela é lugar privilegiado dentro do organismo metálico móvel.
Da janela você vê o mundo lá fora. Sabe o que está acontecendo fora do casulo, da mini-colmeia. Além disso, sentar na janela (por que o popular 'senta na janela' e o letrado 'senta-se à janela') na maioria das vezes significa ter mais espaço (por não ter ninguém ainda sentado naquele par de bancos), ter mais vento (no verão), controle da ventilação (em caso de vento o chuva, você tem o controle do 'abrir' e 'fechar' da janela), e principalmente um lado para encostar a cabeça para quando quiser dormir.
          Na janela passa o filme de maior duração e reprodução da história: a vida cotidiana. Nessa televisão futurística, onde podemos romper a barreira do vidro e mergulhar no 'programa', assistimos a todos os gêneros televisivos e cinematográficos. Comédias relâmpago, por um tropeção ou estabaco de um pedestre desajeitado, filmes de ação do tipo policial (bem comuns nos dias atuais), romances mil com namorados, amantes e apaixonados esperando no ponto, trocando olhares ou se beijando numa esquina. Filmes de terror com estradas escuras e relâmpagos de gelar a alma, e aventuras como as da corrida do gari  para o caminhão de lixo em movimento e a fuga do camelô evitando o rapa. Canais esportivos, com malabaristas, jogadores de futebol e pipeiros estão lá. Resta a quem está no corredor, aguardar a pessoa da sua janela sair ou outra próxima vagar. É por isso que os idosos sentam-se nos primeiros bancos, mesmo com janelas vagas ao fundo. Sua capacidade visual para encontrar janelas é reduzida, então procuram lugares mais próximos para ter de andar menos e evitar um tombo quando o ônibus se debate. Ou isso ou ao lado da saída, caso o trajeto seja muito próximo ou o ônibus lote muito, caso contrário teria que se esgueirar pela selva de corpos do corredor para poder ir embora.



(Termina na quarta e última parte, PROMETO!)

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Cereja.


O bebê foi feito na cama.
A criança pula na cama.
O adolescente se joga na cama.
O adulto descansa na cama.
O velho mora na cama.


Cama = 'c' - ama = se ama = amar a si

Então, crianças. Sejam espertos e encontrem seu amor próprio de novo ao final de cada dia.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Moby Dick (parte II)

          Em frente ao cobrador, a peça mais máquina do organismo: a catraca. Peça fundamental para o bom funcionamento do sistema digestivo do ônibus, ao mesmo tempo que é ferramenta de segregação e contradições. A catraca é o estômago da baleia. Nos aperta, mastiga, nos retira um pouco da energia que a máquina necessita em forma de alguns níqueis e nos coloca para dentro, nos digere. Como chamar de "público" um tipo de transporte que atende quem tem algum dinheiro e deixa ao léu os que não o possuem? A cada dia que passa menos cobradores existem nos ônibus, gradualmente sendo substituidos por um aparelhinho amarelo que surrupia poucos dinheiros ao se encostar um cartão na sua superfície plástica, morta. Ao invés de um "bom dia", recebemos uma luz verde e um "pi" sonoro que substitui o "pode passar". Cobradores vão ficando obsoletos, o motorista assimilando as duas funções e ganhando o mesmo por isso. Pode ser que um dia os ônibus não tenham mais cobradores nem motoristas, a catraca de lá nunca será removida. É a essência da filosofia do mundo moderno, "evoluido". Se tem dinheiro, passe, use, avance. Se não tem, pare. Saia. Fora.
          Finalmente chegamos ao interior da baleia. Duas fileiras paralelas separadas por um corredor metálico. Semelhante às galés da época bíblica, onde fileiras de escravos remavam em um imenso navio romano, são os ônibus de hoje, que com grilhões escondidos (dividas e obrigações ao invés de algemas e correntes) nos fazem trabalhar para atender às vontades do César vigente. Ao fim do corredor, uma cadeira une as duas fileiras e formam um imenso "U", como uma vaia literal escondida. A vaia que poucos percebem, é o próprio rosnado do carro, que serpenteia por entre seus familiares e risca o asfalto com sua borracha negra e mórbida. Nesse oceano, junto com os caminhões, são as maiores criaturas, e as que mais são notadas numa metrópole. As pessoas que ali dentro estão me dão a impressão de participar de algum tipo de celebração religiosa, de culto, de missa. A maioria calada, porém todos com o mesmo movimento corporal, as cabeças balançando no mesmo compasso, chacoalhadas subitamente a cada troca de marcha do motorista. Escolho um dos poucos lugares que sobraram e tenho a sorte de ter vaga ao lado de uma janela. Sento e me torno parte daquela dança coletiva inconsciente. O banco, cinza na maioria das vezes me passa a impressão de não ser destinado a pessoas. O espaço entre dois bancos varia entre cinco e dez entímetros, no máximo. Pelo que parece quem o idealizou esqueceu de considerar que as pessoas têm nos lados do corpo extensões periféricas que não podem ser removidas facilmente chamadas "braços". Ou isso ou era um romântico genial, forçando as pessoas a utilizarem o veículo abraçadas umas às outras. Não, o real objetivo é espremer mais, caber mais gente onde não poderia caber mais ninguém. No estreito corredor de um banco de largura muitas vezes se atinge de pé o dobro de pessoas que poderiam sentar no mesmo espaço. Creio que o próximo passo na "evolução" será a diminuição do número de bancos, visando maior lucro e transformando o ônibus em trem, seu primo mais cruel ainda.

(no próximo post, a conclusão. continuem no ônibus que a viagem é demorada)