quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Moby Dick (parte II)

          Em frente ao cobrador, a peça mais máquina do organismo: a catraca. Peça fundamental para o bom funcionamento do sistema digestivo do ônibus, ao mesmo tempo que é ferramenta de segregação e contradições. A catraca é o estômago da baleia. Nos aperta, mastiga, nos retira um pouco da energia que a máquina necessita em forma de alguns níqueis e nos coloca para dentro, nos digere. Como chamar de "público" um tipo de transporte que atende quem tem algum dinheiro e deixa ao léu os que não o possuem? A cada dia que passa menos cobradores existem nos ônibus, gradualmente sendo substituidos por um aparelhinho amarelo que surrupia poucos dinheiros ao se encostar um cartão na sua superfície plástica, morta. Ao invés de um "bom dia", recebemos uma luz verde e um "pi" sonoro que substitui o "pode passar". Cobradores vão ficando obsoletos, o motorista assimilando as duas funções e ganhando o mesmo por isso. Pode ser que um dia os ônibus não tenham mais cobradores nem motoristas, a catraca de lá nunca será removida. É a essência da filosofia do mundo moderno, "evoluido". Se tem dinheiro, passe, use, avance. Se não tem, pare. Saia. Fora.
          Finalmente chegamos ao interior da baleia. Duas fileiras paralelas separadas por um corredor metálico. Semelhante às galés da época bíblica, onde fileiras de escravos remavam em um imenso navio romano, são os ônibus de hoje, que com grilhões escondidos (dividas e obrigações ao invés de algemas e correntes) nos fazem trabalhar para atender às vontades do César vigente. Ao fim do corredor, uma cadeira une as duas fileiras e formam um imenso "U", como uma vaia literal escondida. A vaia que poucos percebem, é o próprio rosnado do carro, que serpenteia por entre seus familiares e risca o asfalto com sua borracha negra e mórbida. Nesse oceano, junto com os caminhões, são as maiores criaturas, e as que mais são notadas numa metrópole. As pessoas que ali dentro estão me dão a impressão de participar de algum tipo de celebração religiosa, de culto, de missa. A maioria calada, porém todos com o mesmo movimento corporal, as cabeças balançando no mesmo compasso, chacoalhadas subitamente a cada troca de marcha do motorista. Escolho um dos poucos lugares que sobraram e tenho a sorte de ter vaga ao lado de uma janela. Sento e me torno parte daquela dança coletiva inconsciente. O banco, cinza na maioria das vezes me passa a impressão de não ser destinado a pessoas. O espaço entre dois bancos varia entre cinco e dez entímetros, no máximo. Pelo que parece quem o idealizou esqueceu de considerar que as pessoas têm nos lados do corpo extensões periféricas que não podem ser removidas facilmente chamadas "braços". Ou isso ou era um romântico genial, forçando as pessoas a utilizarem o veículo abraçadas umas às outras. Não, o real objetivo é espremer mais, caber mais gente onde não poderia caber mais ninguém. No estreito corredor de um banco de largura muitas vezes se atinge de pé o dobro de pessoas que poderiam sentar no mesmo espaço. Creio que o próximo passo na "evolução" será a diminuição do número de bancos, visando maior lucro e transformando o ônibus em trem, seu primo mais cruel ainda.

(no próximo post, a conclusão. continuem no ônibus que a viagem é demorada)
         
       

2 comentários:

Anônimo disse...

Muit bom! continuo viajando na baleia!

Anônimo disse...

seu talento é de um gene meu!!!!!