sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Moby Dick (FINAL)

          Anoiteceu. Dentro da colmeia não se vê a luz do dia. Chegam cedo, nos primeiros raios de luz, e vão embora quando a lua já reina soberana. São senhores, senhoras, meninos e meninas sacolejando dentro da máquina como meia encardida. O ônibus corta a cidade maravilhosa com aprovação dos morcegos que voam por entre as amendoeiras centenárias. Aquilo tudo ganha aspecto de procissão. Rostos cansados, abatidos, com fome, com frio. Fora isso, um clima de velho oeste também é notado. Olhos atentos, desconfiados. Parecem estar relaxados, mas usam o rabo do olho para certificarem-se que não são ameaçados. Ônibus de noite é assim, ninguém confia em ninguém.
          O ronco da máquina de lavar ecoa na cabeça de todos, é o barulho dominante. A Avenida Niemeyer transforma-se em um trem fantasma, onde kombis, carros e motos passam rente, zunindo ao fatiar o ar. Seus faróis iluminam precariamente aquela pista que serpenteia circundando a pedra, num movimento semelhante ao do mestre-sala acompanhando a porta-bandeira. A cada curva, os corpos são jogados para um lado e para o outro, e a lavagem daquelas peças de roupa, com rugas, manchas e cansaço prossegue pela noite. O passageiro do ônibus noturno nada mais é que uma camisa, uma luva, uma meia nas mãos do patrão. Usam, amarrotam, esgarçam. Jogam na máquina e deixam-os secando nos seus barracos, suas casas, seus apartamentos, para no outro dia assumirem a árdua tarefa de serem úteis novamente. O prêmio vem através de migalhas. O operário de uma linha de montagem automobilística ganha o equivalente proporcional a um pneu. O arrumador de um grande hotel de luxo ganha uma toalha, e por aí vai. É a lógica do mundo moderno. As pessoas se reduzem à sua função, a um objeto. O faxineiro, sem mentir, poderia declarar que é uma vassoura. O mecânico é um alicate, o médico é uma seringa. São apenas números e funções.
          Depois de tantos solavancos, o monstro de ferro começa a vomitar. Os que moram mais perto do trabalho vão descendo aos poucos, enquanto os que moram no ponto final já vão conquistando alguns minutos de sono rumo ao leito merecido. O mesmo cidadão que dorme no ônibus voltando para casa é aquele que é taxado de desleixado e incompetente ao chegar atrasado. Moram a uma, duas, quatro horas do trabalho, fazem baldeação, se espremem, se comprimem, se censuram para poder trabalhar, e são vistos como alguém sem comprometimento por um chefe que chega em 20 min ao trabalho dentro do carro do ano.
          Aos poucos o ônibus se esvazia, sobram lugares. O ponto final se aproxima, mas isso é um mero detalhe. Cada passageiro tem seu próprio ponto final, que é a hora de descer. No ônibus da vida é um pouco diferente. O ponto final não somos nós que decidimos. Um dia o Motorista para, abre as portas e diz: "É aqui."  Você é obrigado a descer, e a vida continua. Podemos ter dificuldades na vida, vislumbrar de perto a porta de saída, mas é em vão. Quem abre a porta é o Motorista, o Guia. Enquanto esse momento não chega, vamos viajando nesse ônibus gigante, redondo e azul que é o planeta Terra. Um ônibus que não para para ninguém, mas que todos, vivendo ou apenas vivos, subimos e buscamos um lugar para ficar. Se vamos olhar para o chão, para nossos próprios pés, reclamar das sacudidas da vida, ou olhar pela janela e aproveitar a infinidade de coisas maravilhosas que passam por nós durante o trajeto, aprendendo com elas, nos tornando melhores, e nos segurando firmes durante os buracos pelo caminho, cabe a nós escolher. Já dizia o ditado: Na vida, tudo é passageiro, menos o cobrador e o motorista.

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