quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Búfalos na Praia

Saio da praia, olho pro asfalto. As ondas de calor que saem pelo chão transformam o caminho numa imensa frigideira, onde o horizonte faz o chão virar espelho e a paisagem tremula como miragem. Estamos no Rio de Janeiro, praia da Ipanema, 37 graus marcam o relógio. Mesmo sendo seis e meia da noite, pessoas se bronzeiam e curtem a areia como se ainda fosse dia. E realmente é. Dada a quantidade de almas pelas ruas, no Rio poderia ser considerado que só anoitece quando chove, que é quando realmente as pessoas vão pra casa dormir no mesmo horário. Pego a van que passa e me sento no banco da frente. A máquina segue seu rumo.
Viajar ao lado do motorista é praticamente a primeira classe da van. Janela sua e de mais um apenas, controle para subir ou descer o vidro, sem apertos, sem gente em pé ao seu lado, sem ficar encurralado entre seu lugar, um mar de corpos e a saída. Se no ônibus, gigante de metal, as pessoas se aglomeram no corredor se equilibrando como podem, na van a falta de espaço atinge níveis que questionam as leis da física. Não há o risco de queda, pois é impossível cair, já que todo e qualquer espaço possui um corpo lutando por ele. No teto ficam os mais altos, curvados e olhando para o chão, tentando apoiar-se nas cabeceiras dos bancos, formando com o corpo uma espécie de letra 'L' invertida.
Penso que para trabalhar de cobrador em uma van é necessária experiencia anterior como estoquista ou similar. Eles encaixam pessoas, acham espaço onde não existe e circulam por dentro da van com uma facilidade incrível, cobrando e recebendo troco de passageiros seja lá onde eles estejam dentro daquele espaço semelhante ao de um banheiro. Nessa sauna sobre rodas, tem-se a vantagem da agilidade, já que os motoristas geralmente são pessoas que cresceram sonhando em ser pilotos de fórmula 1. A van não é como o ônibus, baleia que ondula pelos rios de asfalto. Está mais para um búfalo, que corre com a fúria do estouro de um rebanho. Qualquer coisa que se aproxime ou tente competir acaba levando a pior. O letreiro e a numeração da van, quando existem, são extremamente supérfluos e obsoletos. O cobrador, com voz de feirante anuncia em cada aglomeração de pessoas (não existe ponto) o itinerário completo da viagem: "Gávipanemalebloncopalemelugarsentadovai!" Assim informa que a van passa por Gávea, Leblon, Ipanema, Copacabana e Leme, com lugares disponíveis para viajar sentado. Tal palavra de 39 letras é pronunciada em uma velocidade que faria qualquer locutor de rádio se sentir um estagiário em início de carreira. Além do gogó apurado e da facilidade de locomoção onde não há espaço nem para uma folha de papel, o equilibrio dos cobradores é espantoso. Circulam com a porta aberta, equilibrando-se no batente da porta de correr, a centímetros de voarem direto no chão, fazendo movimentos que lembram um praticante de windsurf ou iatismo. Sua vela é a porta. Seu mar, as calosidades e quebra-molas da via urbana.
Nas sextas-feiras quando escurece, a grande maioria dos búfalos que passam pela zona sul faz o mesmo trajeto: "LAPA - CENTRAL". O espaço que antes era apenas uma sala de espera quente e apertada se torna uma pequena boate móvel. O DJ Piloto no comando do som do carro, liga o funk que faz os passageiros terem uma pequena prévia do que os espera no bairro berço da boemia carioca. Os gringos não entendem muito bem como essa gente que se aperta com sono todas as manhãs é a mesma que tira férias da vida quando passa das onze na sexta. Como o trabalhador que faz milagres financeiros para pagar as contas, comida e moradia para ele e para os seus, consegue se tornar o rei da festa nas primeiras horas de sábado? Eis o segredo brasileiro.
Já disseram uma vez que o Brasil não é um país sério. Pois mataram a charada. O Brasileiro não se leva a sério, e é por isso que é o povo mais feliz do mundo. Todo brasileiro tem o seu "foda-se" no bolso, pronto para uso. Dinheiro é malabarismo, contorcionismo e até ilusionismo. Passamos juntos na roleta do ônibus, negociamos os valores de produtos (três latinhas por 5, quatro latões por 10), criamos a pendura na venda da esquina, fazemos um rolo naquela televisão usada. Um dos paises de maior desigualdade econômica sabe muito bem que ser feliz é item de primeira necessidade. O samba, o funk, o reggae, o rock, o sertanejo, o forró. As festas juninas, os ensaios na Sapucaí. O povo sabe que sem isso, não há vida. Trabalhar é obrigação, menor do que ser feliz. E é por isso que estamos atrás de vários paises em matéria de desenvolvimento. Porém olhe pelo lado humano. Os mesmos países que são líderes econômicos e em qualidade de vida são aqueles do povo frio, fechado, alheio. Pergunte uma informação nas ruas da França. Peça para pagar o seu tablóide londrino quando voltar do banco. Peça carona ao motorista de ônibus de Miami. Agora volte ao Brasil e seja feliz.
Moramos no lugar onde o mundo sai de férias. Não é a toa que tiramos férias mesmo em casa. Em cada esquina, em cada beco, em cada casa há uma festa. Esse é o maior defeito e a maior virtude do brasileiro. Não levamos a sério política, economia, moral. A pátria mãe gentil é uma mulata de escola de samba que samba em meio às plumas que caem da sua fantasia. O show tem que continuar, mesmo que se saiba que uma hora ele acaba. A variedade de ecossistemas, de etnias, de culturas, de músicas e de tribos é a maior do mundo. Temos o rico e o pobre se abraçando e chorando no Maracanã. A analfabeta e a juiza vibrando ao ver o Salgueiro na avenida. O vendedor de mate que trás um oásis portátil em cada ombro. A melhor coisa do Brasil é o brasileiro. Tenham orgulho de serem o que são, mas por favor não se levem a sério.
A van sai da orla e adentra o mar de prédios. Saio da nave que não chega a parar para o desembarque. É preciso agilidade e perícia para saltar do veículo em movimento sem cair. Vejo a van arrancar como touro que avista a bandeira vermelha. Volto a ser só eu, ao invés de um recheio compacto. A sensação é boa, o vento que antes nem era tão percebido ganha ares de ar-condicionado quando se sai de uma van lotada. Olho para cima e vejo o nosso amigo de pedra, no alto do monte, imitando um pássaro com os braços esticados como asas. É a sutil mensagem que aqui estamos bem perto do céu. E que temos que agradecer todos os dias por poder andar por essas ruas, que o mundo inteiro gasta rios de dinheiro para conhecer e para nós custa apenas dois e cinquenta, podendo ser negociado a três por seis.

Um comentário:

Anônimo disse...

maravilhoso! meu grande escritor!
que a vida lhe faça a justiça de ter sucesso noque faz melhor, escrever e viver
Um beijo