terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Rotina

          Anos 90, Rio de Janeiro. Depois do café da manhã, dezenas, centenas, milhares de moleques saíam de casa e faziam a convocação. Na minha rua, Aldemir (mais conhecido como Demizinho), que morava no primeiro andar, era o primeiro a descer e chamar o resto da gangue. O garoto moreno, gordinho, cabelo liso denunciando a descendência indígena inflava seus pulmões e gritava o mais alto que pudesse em direção ao décimo andar: "Leoooooo! Júliooooooo!" Os dois escutavam o chamado e se despediam da Tia Rita (o "tia" era quase o primeiro nome) e saiam correndo rumo ao elevador, ou às escadas. Antes disso, como ritual seguido rigorosamente, a bola de couro da Topper ia primeiro pela janela. Descia com fúria do décimo andar direto para a rampa da garagem, nosso estádio secreto. O barulho da bola batendo do concreto, vinda do último andar daquele prédio da Otaviano Hudson era como o tiro de largada para aquele domingo de férias: BUM!
          Eu morava no terceiro andar e ao ouvir aquela conversa cheia de vogais ("desce aeeeeee!" "Já voooooo!") já iniciava os procedimentos para a diversão: Botava minha sandália Rider (utilizada como luvas de goleiro, traves para o golzinho e bumerangue em caso de briga), meu short de tactel (que servia para jogar bola e traje de banho para um eventual banho de mangueira) e minha camisa (que podia ser de time ou não, mas era uniforme oficial do Com Camisa FC na hora do clássico contra o EC Sem Camisa). Minha mãe costumava dizer que meu nome mudaria pra Daniéuô de tanto me chamarem assim pela janela. Logo logo ouvia o meu nome gritado pela janela: "Daniéééééuooooo!" Ao olhar pela janela, já estavam os três lá embaixo me chamando. Ao descer, continuávamos a chamar o resto do pessoal: André Felipe, o mais velho, junto com o Leo, era o próximo. Morava no prédio em frente e escolhíamos na sorte quem ia apertar o botão do porteiro eletrônico para chamá-lo. O mulato da cara redonda que lhe rendeu o apelido de Horácio (dinossauro criado por Maurício de Souza) desligava sua vitrola e vinha contar as últimas novidades sobre o seu projeto em se tornar DJ profissional. Mais para cima da rua morava o Roger, baixinho dos mais novos da galera, especialista em pique esconde e dos mais habilidosos no pique-pega e polícia e ladrão. No mesmo prédio tinha o Ronaldo, cria da Rocinha que ficava de férias na casa do tio (ou avô, nunca soube) que era porteiro chefe de um dos prédios. Ronaldo, botafoguense roxo, era perito em pipas, arraias, marimbas, além de ser bom jogador de futebol. Juntávamos todos e íamos chamar Gilson e Wilson, que moravam há 3 quarteirões de distância. O pai do Gilson era venerado por todos os moleques por ser mestre em bicicletas, praticamente um cirurgião a nossos olhos.
          Voltávamos ao estádio-garagem e iniciávamos a divisão dos times, que era feita por tamanho. Eu para um lado, Demizinho pro outro. Leo para um lado, André Felipe para o outro, Júlio e Ronaldo também iam para times opostos, Gilson e Wilson eram em regra nossos goleiros, embora o Leo também se aventurasse no gol (ou portão da garagem, como preferirem). Roger e algum outro moleque amigo também jogavam e a pelada se iniciava. Eram chutes tortos, de bico ou de peito de pé, que eram defendidos pelos goleiros mais hábeis de toda a rua, que gritavam com orgulho o nome do arqueiro profissional do seu time. Eu gritava "Gilmarrrr!" Grande goleiro do Flamengo e da Seleção. O Leo defendia sob a benção de Wellerson, arqueiro tricolor. Ronaldo fazia pontes exaltando Wagner, eterno goleiro alvi-negro. Não haviam vascaínos nessa pelada, mas quando algum se aventurava pelos nossos lados, Carlos Germano era lembrado pelo eventual pequeno cruz-maltino. O futebol era jogado sem preocupação, com gritaria, gargalhadas e reclamação, mas com poucos palavrões. Palavrão naquela época era motivo para ficar de castigo e não descer para brincar no dia seguinte, então ninguém se atrevia a proferir palavas daquele teor. Os palavrões vinham das janelas, quando as acertávamos e sumíamos instantaneamente como passe de mágica. Ao perna-de-pau que fez a burrada de isolar a bola na casa do vizinho, cabia a dura tarefa de ir sozinho bater na porta e pedir a bola de volta para o vizinho. A mais temida era Dona Fayga, senhora judia de 350 anos que morava no segundo andar e conhecia mais palavrões que um marinheiro filho de um casal de feirantes. Seus gritos ecoavam em nossas cabeças a ponto de passarmos correndo e em silêncio pelo segundo andar. A maior prova de coragem era tocar a sua campainha e sair correndo. A própria proximidade com a porta já nos dava arrepios, tamanho pavor que tínhamos por aquela senhora que mal conseguia andar da sala para o banheiro.
          A pelada terminava na hora do almoço, onde as mães saíam de suas casas e faziam a segunda convocação, Tia Rita, Dona Marizete, Seu Carlos e Tia Goretti (minha mãe) gritavam nossos nomes e íamos com a fome de náufragos devorar nossos pratos de arroz, feijão, bife e batata-frita regados a coca-cola gelada. De tarde era a vez das sessões de Super-Nintendo. Fazíamos um rodízio não-verbal e nos divertíamos horas e horas com Super Mario, Fifa Soccer, International Superstar Soccer, Street-Fighter, Mortal Kombat e Mario Kart, além de outros tantos jogos. Os mistos quentes preparados, e a coca-cola sempre presente eram o combustível de copas do mundo, grandes prêmios de fórmula um, lutas virtuais e aventuras na garupa de um dinossauro. Aos poucos, ia dando o horário de irem para casa jantar, cada um voltava ao seu ninho sabendo que no outro dia haveria uma repetição daquela mágica rotina que hoje nos causa um sorriso feliz por ter vivido tudo aquilo e um olhar triste da saudade daquele tempo que não volta mais.

2 comentários:

kptaun disse...

Gostei muito de lembrar daquela época, tempos bons e que fazem falta.
Muito maneiro seu blogg e ótimas palavras , me diverti muito e sempre que tiver novidades dá um toque. Abração primo :)
JúlioMello

maria goretti disse...

maravilhoso!!!